Você lembra o que aprendeu na escola sobre cultura afro-brasileira?
Araciele Ketzer, colaboradora da AJN em Santa Maria (RS)| Fotos: Fernanda de Araújo Patrocínio
Como a identidade afro-brasileira é representada em produtos editoriais didáticos que chegam até as mãos de alunos e professores da escola pública brasileira? Você, por acaso, já parou para pensar nesse assunto? Na forma como isso acaba afetando a cultura desses alunos, como eles olham o mundo, se comportam e agem?
Pois é, a jornalista e agora mestre em comunicação midiática pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, Fernanda de Araújo Patrocínio, desenvolveu ao longo de dois anos de pesquisa a dissertação: “O livro e o axé, o erê com ganga zumba: representações afro-brasileiras na produção editorial didática voltada à lei 10.639/2003 e apropriação dos professores”, a qual discute exatamente essa temática.
Nós, da Agência Jovem de Notícias, conversamos com ela para relatar aspectos do resultado desse trabalho. Confira abaixo, a entrevista:
Agência Jovem de Notícias – No dia 28 de março de 2016, você defendeu a dissertação “O livro e o axé, o erê com ganga zumba: representações afro-brasileiras na produção editorial didática voltada à lei 10.639/2003 e apropriação dos professores”. Qual a motivação que te levou a optar por essa temática?
Fernanda de Araújo Patrocínio – Eu sou jornalista e pesquisadora, desde 2009 trabalho com a temática direitos humanos vinculados à narrativa. Além disso, me interesso muito por educação – sou filha, sobrinha e prima de professores da rede estadual de São Paulo-SP. Então, desde sempre os relatos destes professores sobre a sala de aula são assunto na minha casa. Minha família é bastante marcada pela mestiçagem também (minha mãe é branca e meu pai é negro).
Diante da pesquisa, me deparei com alguns questionamentos que eu nunca havia parado para pensar acerca de como as pessoas encaram a diferença étnico/racial. E mesmo como nem sempre as pessoas estão abertas para conhecerem melhor sua própria história – num país marcado pela pluralidade nem sempre temos acesso à aprendizagem de algumas culturas, como a afro-brasileira (apesar de, segundo o Pnad de 2013, 53% dos brasileiros se autodeclararem negros).
E é esta lacuna que a lei 10.639/2003, por intermédio da institucionalização do direito ao acesso à história e a cultura afro e afro-brasileira, tenta preencher. Todo indivíduo brasileiro deveria ter o direito à afro-brasilidade. Mas me formei em 2005 no ensino médio (escola privada) e nunca tive esse conteúdo. Este incômodo, com certeza, também foi uma das minhas motivações.
AJN – Quais as principais discussões, resultados, que você poderia destacar a partir do desenvolvimento da pesquisa?
Fernanda – Na pesquisa, nossas reflexões partiram das análises dos curtas- metragens “O xadrez das cores” e “Vista minha pele” e da entrevista fechada que fizemos com os responsáveis pela educação afro na Coordenadoria Regional de Educação do Rio Grande do Sul-RS e de São Paulo–SP, além dos professores de Língua Portuguesa, História e Arte de Santa Maria/RS e de Mogi das Cruzes/SP.
No decorrer da dissertação, fomos resgatando casos de racismo com grande repercussão midiática e a representação afro-brasileira também em produtos culturais. Percebemos que, apesar de não partirmos teoricamente do racismo e do preconceito, é inevitável falar deles, pois as representações estão muito relacionadas à violência e à marginalização que a população afrodescendente está submetida.
Nas respostas dos professores percebemos que a maioria deles conhece a Lei 10.639/2003, mas ainda há resistência ou mesmo o não conhecimento da abordagem da temática afro-brasileira além do óbvio – muitos professores afirmaram que trabalham a temática no dia 20 de novembro (dia da consciência negra, apenas).
Quanto aos professores entrevistados, foram 10 no Rio Grande do Sul e 300 em São Paulo. No RS observei mais resistência por parte dos professores em participar da pesquisa, mas mesmo que em SP o número tenha sido maior percebi que os docentes de ambos os locais ainda dão passos incipientes no que tange a colocar a Lei 10.639/2003 em prática na sala de aula.
Ainda estamos diante do reconhecimento do diferente, mas distantes das relações efetivas e das apropriações entre diferentes. Sendo a escola o primeiro contato no qual temos esta aproximação com o não-familiar, é chocante saber destas lacunas neste espaço democrático.
Os professores reclamaram também da dificuldade em ter acesso aos materiais e na ausência de mais formações continuadas – problema que vemos desde a graduação. É preciso falar sobre o racismo e é preciso também valorizarmos a educação inter e transcultural para construirmos uma sociedade mais democrática (político, social, cultural e em termos de representação).
AJN – Na sua opinião, qual a importância de colocar essa temática em pauta na sociedade atual?
Fernanda – Eu acho que é um assunto no qual não dá mais pra disfarçar o problema, né? Há o racismo, o estereótipo baseado em preconceitos e no colonialismo, e há muita discrepância e violência quando se trata da representação afro-brasileira. Reconhecer o espaço de voz para a pluralidade é essencial até mesmo para entendermos a nossa identidade brasileira – e para isso precisamos nos permitir experienciar a alteridade – seja na escola, seja na Comunicação, seja na sociedade por um todo.
E aí, qual o seu posicionamento sobre esse assunto? Além da identidade afro-brasileira, outros grupos que formam a nossa cultura nacional acabam sendo colocados à margem das discussões no sistema educacional e da sociedade como um todo. E isso se traduz em cidadãos que discriminam e tem atos de violência contra quem não reconhecem como seu “igual”. É como um círculo vicioso.
É preciso reverter isso, promover uma cultura de valorização das diferenças, afinal a riqueza da história brasileira está na multiculturalidade. O primeiro passo pra isso acontecer é falarmos mais sobre isso, abertamente, sem maquiagens. Aqui nesse espaço da Agência Jovem de Notícias, na mídia, no meio acadêmico, na rua, no condomínio, na escola, na família, na política, no trabalho, nas empresas, em um happy hour com os amigos. Afinal, como dizia o educador Tião Rocha, a educação acontece em todo lugar, a vida toda, até de baixo de um pé de manga.
E é a partir dessa educação, vista de um ponto de vista mais abrangente, que transformamos as nossas formas de olhar e agir no mundo, alcançando uma sociedade um pouco mais justa e que celebre as suas diferenças – não relute contra elas.
A dissertação da Fernanda foi realizada no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, a partir da orientação da Professora Doutora Rosane Rosa. Se você quer ficar mais por dentro do trabalho da Fernanda, contate-a pelo e-mail: faraujopatrocinio@gmail.com.