Trajetória, Resistência e Conquistas da Cultura Quilombola Kalunga no Brasil
Um pouco da história da comunidade quilombola que existe há mais de 200 anos no Brasil. A cultura quilombola Kalunga é um dos patrimônios mais ricos da sociedade brasileira, suas tradições perduram por décadas e representam a força e a resistência ao longo da história do Brasil.
Por Gustavo Souza
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Há mais de 200 anos, a cultura quilombola Kalunga é uma rica expressão cultural que se manteve viva desde os tempos de escravidão no Brasil. Uma história e uma cultura marcada por lutas e resistência, que encontrou no diálogo, na comunicação entre as suas gerações a chave fundamental para se manter viva. A comunidade Kalunga teve origem no século XVIII, formada por negros escravizados e levados para trabalhar em minas de ouro. Nesse trabalho, eles cavavam as beiras dos rios com os pés para dentro d’água, tirando o cascalhado que era naturalmente misturado com as pepitas de ouro.
Com tanta violência, iniciada desde a retirada a força de suas terras natais, a fuga dos negros desses locais de escravidão era constante, e a partir dessas fugas eles se concentravam em locais coletivos, daí surgiram os quilombos. Porém, mesmo escondidos de seus “senhores”, muitas vezes eram encontrados e passavam por punições cruéis, inclusive que afetavam diretamente seus pés, com o objetivo de evitar possíveis novas fugas.
Com este contexto, eles perceberam que precisavam fugir para locais mais distantes e de difícil acesso. Na busca por esses espaços, descobriram a região que é hoje denominada Chapada dos Veadeiros, um local cercado de serras e morros, caminhos estreitos e amplo de curvas, que passou a ser a morada de quem foi retirado de sua terra natal. Assim o povo Kalunga foi se formando até chegar nas 3 comunidades que povoam o território hoje. A maior delas está situada em Cavalcante/GO e conta com mais de dois mil moradores.
Por sua história nascer do vínculo com o meio ambiente e ser um espaço de refúgio para seu povo, a cultura Kalunga é marcada por uma forte ligação com a natureza e o modo de vida sustentável. Em fevereiro de 2021, o programa ambiental da ONU (Organização das Nações Unidas) registrou o sítio histórico e patrimônio cultural kalunga em Goiás como o primeiro TICCA (Territórios e Áreas Conservadas por Comunidades Indígenas e Locais) do Brasil. A comunidade também possui profundo conhecimento sobre as plantas medicinais, práticas de agricultura familiar e técnicas de pesca e caça.

A preservação de suas tradições ancestrais são transmitidas oralmente, com cantos, contos, mitos e danças, que são passados de geração em geração. A religiosidade também desempenha um papel fundamental na cultura Kalunga. Além de professar fés cristãs, eles praticam uma religião de matriz africana conhecida como Jongo, que é uma forma de expressão cultural e espiritual que envolve música, dança, percussão e canto. O Jongo é uma forma de resistência e celebração da identidade quilombola, mantendo vivas as tradições e os valores transmitidos pelos seus antepassados.
A cultura se apropria de diversos formatos já existentes e os adaptam para a sua realidade, como por exemplo o seu próprio calendário cultural que é marcado pela forte presença dos festejos populares relacionados ao Catolicismo. Os giros e arremates de folias, as novenas e romarias são momentos nos quais a comunidade reproduz as práticas, as relações sociais, seus costumes e valores, por meio de signos e significados que foram incorporados pelos quilombolas no território, marcando nele sua identidade e tradição.
O “giro”, o “pouso”, a “matina”, o “arremate”, o levantamento do mastro e a dança da “sussa” são rituais característicos desses festejos, que representam parte do patrimônio cultural imaterial do povo Kalunga. Por meio dessas práticas eles reafirmam sua identidade e no espaço festivo a comunidade reproduz sua história de fé, devoção e celebração. Desse modo, o processo de construção da identidade territorial da comunidade se dá também por meio do culto ao sagrado
Em todas essas festas tradicionais, após as rezas, sempre acontece a dança da “sussa”, dança essa que as mulheres produzem suas próprias saias para a celebração que conta com muita fartura de comidas típicas da roça e forró até o sol raiar. Muitos dos festejos acontecem simultaneamente em diferentes comunidades Kalungas, bem como na cidade e zona rural de Cavalcante que é onde tem uma centralização do quilombo.
A comunidade também conta com a organização social dos Kalungas que é baseada em princípios comunitários e democráticos, sendo que as decisões são tomadas de forma coletiva, por meio de assembleias e reuniões, e a colaboração mútua é fundamental para o funcionamento da comunidade. Já sua economia é baseada principalmente na agricultura com a produção de alimentos orgânicos e no artesanato, que inclui a confecção de cestos, esteiras, trançados, objetos decorativos e tradições do seu povo.
Além de preservarem suas tradições culturais, os Kalungas também enfrentam desafios relacionados à preservação do seu território. Neste mês de maio/2023 foi aprovada uma lei que ordena a remoção de qualquer pessoa do território Kalunga que não tenha a certidão de registro de imóvel e que não faça parte da comunidade, ou seja, que não esteja registrada ou que não seja reconhecida pela associação quilombola.
Apesar dos desafios, a cultura quilombola Kalunga permanece viva e resistente. A comunidade tem se organizado e fortalecido para garantir seus direitos, preservar sua cultura e promover o desenvolvimento de suas terras. Projetos educacionais, turísticos e de valorização cultural têm sido apresentados, buscando empoderar os Kalungas e promover o reconhecimento de sua contribuição para a história e a diversidade cultural do Brasil.
A cultura quilombola Kalunga é um exemplo inspirador de resiliência, resistência e valorização de suas raízes. É um patrimônio vivo que merece ser reconhecido, homenageado e preservado para as futuras gerações.
Para conhecer mais sobre a cultura quilombola kalunga a partir da narrativa do seu povo, assista:
A jovem comunicadora Alciléia Torres vive na comunidade Kalunga e está produzindo uma série especial sobre a ancestralidade quilombola especial para as redes da AJN. Acompanhe as publicações!
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