Soul – o filme que jazzou no ano que não acabou
Essa resenha contém muuuuito spoiler. Assista ao filme primeiro se quiser 😉
Por Victoria Souza*
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Chorei, dei risada, fiquei de boca aberta. Foram vários sentimentos em 1h e 46 min de filme. Quantos aprendizados na mais nova animação da Pixar (que geralmente não decepciona). Apesar de ter visto algumas críticas negativas, esse filme não fala de espiritualidade especificamente. Mesmo quem não acredita ou não tem nenhuma religião, consegue tranquilamente se conectar com a mensagem poderosa de Soul.
Alguns dos tópicos a seguir, os quais vou explicar com todos os detalhes possíveis são as nossas maiores lições apenas nos 40 primeiros minutos de filme. Foi “pedrada atrás de pedrada” para quem passou por um ano desafiador como 2020. Realmente concordo que o filme não é específico para o público infantil quem talvez não compreenda todas as mensagens. De qualquer maneira, esse filme é extremamente profundo e merece grande destaque, destaque além do design e arranjo.
O meu desejo é que a Pixar, a Disney possam de verdade investir nesse tipo de história que toca a alma. Nada contra os filmes de príncipe encantado, mas acredito que a geração que desponta pede histórias diferentes, histórias que impulsionam não apenas a sonhar, mas também a refletir e realizar.

Estamos desconectados da vida?
Basta olhar em volta! Como é fácil se desconectar da vida, não é? Tantas coisas para fazer, problemas, chuva de informações e pessoas ao seu redor, preocupações, ansiedades e quando você percebe, virou um “obsessor” de si mesmo. Achei incrível a abordagem de se reconectar com a vida, principalmente porque o ano de 2020 nos obrigou a fazer isso: “Máscaras de pano no rosto, para nos comunicarmos pelo olhar novamente”.
Foi preciso sair do piloto automático e se reconectar com a vida, se questionar, acordar do sono letárgico que estávamos passando. Existem diversas pessoas totalmente desconectadas da vida, obcecadas e presas em ideias fixas que não as deixam viver de verdade, apenas agem como um robô. Como diz Joe Gardner, isso é muito triste!
A importância de ter um mentor para nos ajudar nos perrengues da Terra

Ai de nós, se não fossem nossos mentores! Muitas vezes nos sentimos sozinhos, mas quando se tem amigos incríveis que estão ali para pegar na nossa mão e nos ajudar a levantar, a vida é mais leve. E essa é outra parte do filme maravilhosa: os mentores/amigos/companheiros seguram na nossa mão até onde dá e depois nós precisamos fazer a nossa parte. De qualquer forma, ficam ali olhando e torcendo por nós. Os mentores podem ser da própria família, no trabalho ou surgir em qualquer ponto dessa jornada que chamamos de vida, prontos para nos guiar, porque se “queremos ir longe, precisamos ir acompanhados”.
Mindfulness (“a viagem”)
Quando fazemos o que gostamos, colocamos nossa alma naquilo. Podemos passar horas fazendo isso, literalmente viajamos. Achei incrível que esse conceito surgiu em um filme infantil, porque seria muito importante para as crianças se acostumarem com a ideia do mindfulness antes mesmo de conhecerem o mundo adulto. O mindfulness está muito associado a manter a atenção plena e ter inteligência emocional para conseguir principalmente, lidar com os problemas que surgirão ao longo do caminho. Como eu gostaria de aprender sobre isso na infância! Nessa viagem chamada vida, atenção plena nos beneficia no trabalho e na vida pessoal, trazendo equilíbrio e dissipando sentimentos desagradáveis tão comuns na vida moderna.
Assistindo ao filme da nossa vida
Já parou para pensar que, se a sua vida fosse um filme, que tipo de filme, seria? Comédia? Terror? Pois bem, o nosso herói Joe Gardner descobre que sua vida não foi mais do que uma ilusão. Aposto que ele não foi o único a ter esse susto ao acordar do estado de sonolência que muitos ainda se encontram. Quantos de nós não acordou e percebeu durante esse ano, que precisava mudar completamente de vida? Partir para outra? Tomara que muitos tenham realizado mudanças positivas.
Não aceitação da morte
Acho que essa foi a figura de linguagem menos sutil. Muitos de nós não queremos sair da Terra, ainda mais quando finalmente as coisas começam a dar certo. Ainda não lidamos muito bem com a única certeza da vida, sair do palco da vida no auge de suas carreiras, no ponto máximo da vida ou quando finalmente estão prestes a atingir aquilo que buscaram a vida toda?
Além de não lidarmos bem com esse tema, não queremos nem falar sobre o assunto “morte”. Li diversas críticas de pais falando que esse tema não deveria ter sido abordado em um filme infantil, ainda mais depois do ano que tivemos.
Esse já é o segundo filme da Pixar que aborda a temática (Viva, a vida é uma festa) e por mais que não seja um assunto extremamente fácil, sou da opinião que deixar de falar sobre, não é a melhor alternativa. É realmente um assunto muito profundo e por mais que estudemos e nos dediquemos a entender, na hora percebemos que não estamos preparados nem para ir, nem para deixar ir.
O medo nosso de cada dia
Além do medo que a personagem 22 tem de ir para a Terra, existe uma grande dificuldade para ela concretizar essa ação. Em um momento, parece que basta pular no planeta Terra, mas o filme mostra que antes disso, é preciso conseguir um tal passaporte para a Terra. No fundo, a 22 tem muito medo da Terra, assim como nós. Temos medo de tudo que é desconhecido, misterioso e esse medo nos limita de viver. O que será que acontece ao pularmos na Terra? Como lidaremos com essa oportunidade? E se eu não gostar? E se eu sofrer? E se as pessoas me magoarem? E se? E se? E se? Bem, em 2020, aprendi que temos que ir, mesmo que com medo ou então nunca saberemos.
Missão de vida: ser um sucesso ou ser um fracasso?

“Sua vida começa agora” (fala de Joe quando sai do camarim de sua artista predileta). Isso me fez pensar na mania que temos de achar que nossa vida só vai começar quando realizarmos um grande feito. Aos 54min, começam a falar de propósito e como é possível dar um jeito de ser feliz mesmo se seu plano A não deu certo. Como é possível fazer o melhor mesmo se a vida não te deu o que você esperava. Caraca!
Um barbeiro (que apareceu apenas naquela cena) deu a melhor lição de vida para aquele músico que ainda estava um pouco preso na sua própria arrogância. Bem familiar, não acha? Fazemos isso também “de vez em quando”. Antes de 1h de filme, a 22 nos mostra que vale a pena viver, não só quando conquistamos alguma coisa. Nos mostra que a vida não é só sofrimento e pode ser muito divertida, se olharmos além.
Depois de 1h, os aprendizados não param e são bem profundos, como por exemplo, o fato de o metrô tirar o pior das pessoas (brincadeirinha). O que eu quero analisar mesmo é a frase cliché “quando fizer X, vou ser feliz”. A melhor parte de todo bom storytelling é quando nosso herói finalmente “chega lá”, atinge o objetivo que o deixa obcecado durante todo o filme, mas o interessante é que quando ele chega lá, descobre que não era apenas água, que já estava no próprio oceano. Lindo, né? Entendeu a metáfora? Quantos de nós não almejamos muito uma coisa e quando conseguimos ela, descobrimos que aquilo, não preenche como pensávamos que iria preencher? Por que isso ocorre? Justamente porque ficamos obcecados procurando o oceano e não sabemos que já estávamos nadando nele esse tempo todo.
Coragem para enfrentar a vida

Talvez essa parte do filme seja a que os adultos menos tenham gostado, porque joga na nossa cara verdades que não queremos aceitar. O fato de sempre querermos ficar na zona de conforto, ao invés de procurar por novos desafios. O fato de aceitarmos o que a vida, as pessoas, nossa família nos impõe sem questionar ou sempre sermos obrigados a engolir os “sapos da vida” que é muito mais fácil, do que enfrentá-la.
No momento que o personagem principal “enfrenta” sua mãe, não é uma afronta pessoal contra os pais e sim contra a vida. Não é para romancear a vida e sim ter coragem para assumir o que realmente te faz feliz. E daí que eu quero cantar no metrô? Não significa ser fracassado. Existe aliás uma verdadeira confusão entre o que é sucesso e o que a sociedade acha que é sucesso. Lembra daquele cara no escritório totalmente desconectado da vida, que acorda e quebra todos os computadores?
Obviamente você não precisa fazer isso, mas é preciso coragem para sair do estado de zumbi e encontrar um emprego que te faça feliz, deixar de ser “obsessor” de si mesmo. Parafraseando alguns filmes da minha infância, para algumas pessoas falta apenas “escutar o seu coração”. Sei que no mundo adulto, de contas e responsabilidades não é tão fácil assim seguir o coração, mas se fizéssemos isso talvez não teriam tantas pessoas infelizes em empregos errados.
Às 1h20min, após descobrir que já estamos no oceano, as próximas lições são sensíveis, realmente acredito que poucas crianças tenham entendido isso: A sua missão é viver! A vida é a trajetória, não o final. Como ouvi isso durante esse ano maluco, como ouvi isso ao longo da vida, mas as “cobranças da vida” são tão ensurdecedoras, que acabamos ouvindo apenas o tic tac do relógio ou o dim dom do metrô, que nos acorda daquele estado de zumbi, para não perdermos a próxima estação.
Hoje em dia muito se fala sobre propósito. Propósito é a palavra da moda, eu poderia dizer. Existe uma falácia muito interessante de que você precisa fazer o possível e impossível para encontrar o seu propósito para ser feliz e só depois de encontrá-lo, será feliz. Essa obrigação de encontrar o propósito a todo custo, de preferência antes de ir para a faculdade, transforma diversos jovens em pura ansiedade buscando enlouquecidos por esse tal propósito.
Para onde ele foi? E agora, o que fazer da minha vida se não tenho propósito? Essa é a obsessão da 22. Viver procurando pelo propósito então, virou mais um motivo de ansiedade para todos nós. Ficar obcecadx pelo medo de morrer sem descobrir seu propósito, medo de não exercê-lo, medo de não dar tempo. Quantos medos nos guiam ao longo dessa jornada? E enquanto isso, a vida vai passando sem percebermos.
Acredito que nosso propósito é ser feliz e fazer as pessoas felizes de um jeito que pode ser vendendo maquiagem, coletando o lixo ou tratando doenças. Tudo isso, os especialistas chamam de jobs e eu chamo de transformar a vida das pessoas. São inúmeras as oportunidades de melhorarmos a vida das pessoas e a nossa também. Já reparou que no final dos filmes, a vida sempre dá outra oportunidade? Eu te garanto, isso não acontece só nos filmes. Cada segundo é uma nova oportunidade, para experimentar, se encontrar, desculpar, resumindo: jazzar.
É por isso que eu digo que esse filme jazzou em um ano que não acabou!
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*Texto originalmente publicado no blog que a jovem comunicadora mantém na plataforma Medium.