Sobre a Corporeidade
No décimo artigo da série sobre os valores civilizatórios afro-brasileiros, um olhar sobre a corporeidade enquanto linguagem, o conhecimento do corpo e sua valorização. O corpo carrega em suas marcas as memórias da nossa ancestralidade.
Por Cassia Flavio de Oliveira
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A corporeidade como valor afro civilizatório, refere-se à relação do ser com seu corpo.
Reflete sobre a comunicação com o outro, desde os primeiros momentos de vida, por exemplo, um bebê mesmo não dominando a linguagem verbal, consegue se comunicar com o outro através da sua linguagem corporal, assim como um adulto, que mesmo com este domínio não precisa, necessariamente, utilizá-la num momento que enxerga um conhecido na rua. Ele poderá acenar e o outro entenderá que é um “oi”.
Logo, sendo a primeira via de comunicação com o mundo, é necessário entendimento e respeito com o corpo.
É na infância que a relação com o corpo se inicia, e nesse período da vida devemos também aprender a valorizá-lo. Vivendo numa sociedade que, mesmo com as discussões recentes sobre o assunto, ainda nos limita a padrões de beleza e à rejeição da estética corporal, este é um assunto de extrema preocupação, pois se atrela à forma como o ser se enxerga e integra o mundo, envolvendo o amor próprio e o autocuidado.

Sendo assim, é papel do Estado e da família, através da educação formal e não formal, estimular, desde a primeira infância, o conhecimento, a valorização e o zelo com o corpo. Entendendo suas origens e enaltecendo-as.
E quando tratamos do corpo negro, lembramos que por muito tempo a corporeidade africana foi e ainda continua sendo estigmatizada.
Corpo negro
Corpos livres que um dia se viram nus e amontoados no fundo de um navio, expostos a bichos, doenças e maus tratos, que atravessaram oceanos para territórios desconhecidos.

Os sobreviventes testemunharam outros corpos sendo jogados ao mar e virando comida de tubarões. E ainda que os sofrimentos da travessia já fossem suficientes, em terra, os negros tiveram seus corpos vendidos como mercadorias; separados de suas famílias; e foram escravizados. Nas fazendas, eram açoitados ao tronco se houvesse “rebeldia”.
Sequestrados! Violentados! Mortos!
Após mais de 300 anos do pior capítulo da história, os descendentes dos primeiros africanos a pisarem em terras brasileiras experenciaram a falsa liberdade. Liberdade essa que era sinônimo de genocídio. Nascimento (2016, p. 79) reflete sobre o mito do “africano livre”. Africanos e seus descendentes foram largados à margem da sociedade, sem nenhum auxílio financeiro, moradia ou afins. O mesmo diz: “a abolição exonerou de responsabilidades os senhores, o Estado e a Igreja.” (Ibid., p. 79)
Na perspectiva do Governo, a imigração de europeus, favorecida em leis, faria com que negros fossem extintos, através do embranquecimento racial. Enganaram-se. Estamos no século XXI e mais da metade da população ainda é negra.
Vencemos? Quem dera!
O projeto de embranquecimento deu errado, mas contribuiu para o crescimento da marginalização de corpos negros na sociedade e o mito da democracia racial. A miscigenação brasileira, usada como sustento dessa falácia, é resultado do estupro de mulheres negras e indígenas, tidas como objetos de prazer de homens brancos.
Devido aos rastros colonizadores, mulheres negras no Brasil, estão na base da pirâmide social e são atravessadas pelo racismo atrelado ao machismo. Como consequência encontramos corpos violentados, sexualizados e solitários. Percebe-se isso quando relembramos o antigo ditado popular: “Branca para casar, negra para trabalhar, mulata para fornicar”.
A arte e a corporeidade
A história da existência do negro no Brasil tem um lado muito triste e causador de revolta, mas esta não pode ser resumida somente a violência. É também de luta e resistência. Em meio a tanto sofrimento, a corporeidade negra é evidenciada, contribuindo para a riqueza da cultura afro-brasileira até os dias atuais.
A capoeira, por exemplo, que hoje é patrimônio cultural nacional, e conhecida através de rodas que exalam histórias e alegria, corpos gingando ao som das ladainhas que resgatam a identidade negra, já foi vista como crime e criada para auto defesa dos escravizados (CARVALHO, 2018).
Além da capoeira, a dança também fazia parte da vivência dos negros.
O jongo, a dança da umbigada, trazida ao país pelos bantus, possuem suas rodas até atualidade; a congada que era coroação das rainhas e reis eleitos pelos escravizados, também ainda é muito presente no estado de Minas Gerais; danças afro, as quais se atrelam à religiosidade de matriz africana, representando em seus passos os movimentos dos Orixás, entre outras.
O cenário cultural brasileiro é altamente rico devido às heranças africanas.

O espetáculo do carnaval, realizado pelas escolas de samba com alas coreografadas, grandes alegorias e adereços, coroação de rainhas de bateria, a movimentação ensaiada dos integrantes da bateria, os movimentos rodantes das baianas, a conexão dos corpos do mestre sala e a porta bandeira, denota essa riqueza cultural deixada pelos nossos ancestrais.
O corpo carrega em suas marcas as memórias da nossa ancestralidade.
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Cassia Flavio de Oliveira é atriz do Grupo MovaNos. Quer conhecer mais o trabalho do Grupo MovaNos? Acesse a página deles no Facebook. Quer falar com eles? Envie um e-mail para movimentonosso@gmail.com

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Quer ler mais sobre o tema? Conheça algumas referências
CARVALHO, Talita. Capoeira: um ato de resistência. Politize, 2018. Acesso em: 31 jan. 2021.
NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectivas, 2016.