Fotografia. Marite T. Solorzano (Caracas, Venezuela, 1991), série “seres nournos”, São Paulo, Brasil, 2020.

“Seres noturnos”: São Paulo durante a pandemia

“Para alguns, o céu é o teto, para muitos, a quarentena obrigatória pela Covid-19 só foi possível a céu aberto.”

Texto: Mariano Figuera | Edição: Monise Berno
Imagens: Marité Solórzano

“O que me motiva?…Neurose, ansiedade, medos, de alguma forma é o que me motiva… criar é uma forma de exorcizar o que sinto…”

Sesc Bom Retiro (São Paulo) #JovensArtistasNoCentro | Episódio 4 – com Marité Torres Solórzano [5 de junho de 2021]

No quarto episódio do projeto ‘Jovens Artistas No Centro’, vamos conhecer a jovem Marité Torres Solórzano (@olhardebruxa). Venezuelana. De criança gostava de transformar as manchas no chão em desenhos figurativos. Na faculdade estudou Cinema e Fotografia, mas se apaixonou mesmo pela Animação, como as histórias do Studio Ghibli, o trabalho de Jam Svankmajer. Trabalhou como montadora e editora, ainda na Venezuela. Com a crise dos últimos anos, migrou para o Brasil e trabalhou em alguns projetos audiovisuais. A pandemia interrompeu seus projetos e começou a fazer entregas de bicicleta. De alguma forma, voltou às suas raízes como uma criança selvagem, com cicatrizes e hematomas nas pernas. Assista o episódio no Facebook do Sesc Bom Retiro.

Marité Solórzano é uma migrante venezuelana que vive na cidade de São Paulo. Ela  estudou na escola de cinema do Instituto Armando Reverón de Estudos Superiores de Artes Plásticas em sua cidade natal, Caracas e, desde a sua chegada a esta megalópole, ela trabalhou, quase simultaneamente, como fazendo entregas para aplicativos de bicicleta, como fotógrafa e como agente de promoção ambiental em uma unidade pública municipal de saúde. Marité é, acima de tudo, uma “caçadora de imagens”. Este gesto de “perseguir imagens”, segundo a sua própria história, deve-o à avó, que a inspirou desde pequena através de uma brincadeira que faziam uma com a outra; que consistia em procurar imagens nas manchas dos ladrilhos.

Em 2019 decidiu migrar. Sua primeira opção não foi São Paulo, mas sim Nova York (Estados Unidos), já que um de seus melhores amigos mora naquela cidade. Porém, realizar esse plano a partir da Venezuela não seria tão simples, já que o país passava por um de seus momentos mais críticos, tanto política quanto economicamente: escassez de alimentos, remédios e itens básicos, hiperinflação que desvalorizava cada dia mais a vida. Nesse contexto, Marité decidiu vender alguns equipamentos fotográficos e juntar suas economias para comprar uma passagem de avião para São Paulo.

Como muitos outros migrantes e pessoas em situação de vulnerabilidade, a pandemia de Covid-19 viria a agravar as desigualdades num mundo onde as “garantias” de sobrevivência são individuais e não coletivas. Assim, Marité não conseguiu cumprir integralmente a quarentena de Covid-19 decretada pelo Estado de São Paulo em março de 2020. Ela não podia parar de trabalhar, precisava pagar aluguel e comer. Então a quarentena não era uma opção. Enquanto algumas pessoas ficaram meses em suas casas, ela percorria as ruas vazias, dia e noite, fazendo entregas. E aproveitava esse trânsito, sempre que podia, para captar imagens com sua câmera. Esses registros deram origem a esta série de fotografias que ela intitula como “seres noturnos”, onde retrata uma cidade vazia, pós apocalíptica, impensável junto seus habitantes, que apresenta especialmente aqueles que viveram a quarentena a céu aberto nas noites frias de SP.

Segundo Marité, “na rua não se pode fechar os olhos… porque dói perder um momento”, é a partir desta premissa que surgem estas imagens, os seres noturnos são os “outros” e “nós somos nós” ao mesmo tempo, esses “seres” são nossos reflexos. “Eles são nosso espelho social, o que somos como sociedade.” Em seus passeios e percursos pelas ruas de São Paulo, Marité encontrou uma forma de captar as realidades e experiências dos mais atingidos pela pandemia; os sem-abrigo, os sem-abrigo e os que não podiam deixar de trabalhar para se protegerem do vírus.

Durante seus passeios pela cidade durante a quarentena, Marité tirou sua câmera da bolsa para capturar os cenários que se desenrolavam diante de seus olhos: as ruas vazias, os bares e estabelecimentos fechados, os moradores de rua ao ar livre, lá fora periferias de comércios fechados, habitando as ruas vazias, em sua eterna quarentena ao ar livre. Essas fotografias revelam o contraste entre beleza e desespero, esperança e adversidade, em um mundo que se tornou um cenário inédito, em uma cidade caracterizada pelos contrastes de sua desigualdade. Em palavras de Marité; “Saí algumas noites esta semana para documentar os primeiros dias de uma São Paulo calma, perturbadora e fantasmagórica” 

Estas imagens nos convidam a refletir sobre as consequências (in)visíveis de uma crise global e de uma pandemia anterior ao Covid-19; a da desumanização da vida. Através do olhar sensível dessa caçadora de imagens em seu trânsito por essa selva de concreto, obtemos um fragmento da dura realidade que muitos enfrentam no dia a dia: falta de moradia, insegurança no trabalho, isolamento e injustiça social.

Cada fotografia é impressa na frase “estar no momento certo”, é um testemunho poderoso e cru da luta constante pela sobrevivência daqueles que foram marginalizados e esquecidos em meio a uma pandemia que expôs as profundas divisões e abismos da nossa sociedade humana; onde apenas alguns podem se isolar em casa, manter seus empregos e comprar comida, enquanto outros não podem parar de produzir, trabalhar, mesmo quando isso significa risco de pegar o vírus e morrer, já que durante naquele momento da pandemia (2020-2021), pelo menos no Brasil, ainda não havia vacina para a Covid-19.

Marité, andando de bicicleta, para e pega sua câmera para capturar cenas que chamam sua atenção. Como migrante, muitas coisas que ela vê não são estranhas a si mesma, são também uma possibilidade. Mas “ver” os outros também é uma possibilidade, uma maneira de estabelecer um diálogo, é um passo para “fazer parte” de algo, para conhecer alguém ou para nos conhecermos. “Seres noturnos” é pura fotografia de rua, sem encenação, o palco é lá fora, com a lógica típica destes lugares e de seus não-lugares, onde para alguns o céu é o teto, para muitos a quarentena obrigatória pela Covid-19 só foi possível a céu aberto.

Assim, essas imagens nos desafiam a confrontar nossas próprias percepções e preconceitos, a questionar nossos privilégios e a reconhecer a interconexão entre nossas vidas e as vidas daqueles que lutam à margem da sociedade.

À medida que exploramos a dualidade da pandemia, da beleza encontrada em espaços abandonados ao desespero refletido nos sem-teto, somos confrontados com nossas próprias contradições como sociedade. Essas fotografias nos desafiam a agir, a mobilizar além da contemplação e a defender a justiça social e os direitos humanos. É um lembrete de que todos fazemos parte de uma história compartilhada e que nossas ações podem fazer a diferença na vida de outras pessoas. Por meio de empatia, compaixão e compromisso com a mudança, podemos construir um futuro mais inclusivo e igualitário para todas as pessoas.

Atualmente, Marité faz parte do coletivo de mulheres e ciclistas LGBTQIAP+  que fazem entregas e fretes na cidade de São Paulo, o “Señoritas courier”. Se quiser saber mais sobre o trabalho fotográfico e visual de Solórzano, siga-a no instagram e acompanhe o site.

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