[Resenha] Todo Dia a Mesma Noite

Por Mariana Assis

O plot inicial de Hamlet se dá com o rei assassinado: ele abandonou um filho e seu irmão assume o trono. O pai de Hamlet aparece como um fantasma para dois soldados e depois aparece para seu filho falando: “Você tem que me vingar, já que é essa a regra, eu fui assassinado e você tem que matar quem me matou”. Ao se falar de memória, a figura desse fantasma mostra-se interessante, visto que ele traz na mensagem uma obrigação: “Você tem que me vingar”, ou seja, uma recusa ao esquecimento. Sob esse viés, o livro Todo Dia a Mesma Noite,  da jornalista Daniela Arbex, demonstra ter sido concebido, ainda que em prol do coletivo e não em benefício próprio, como em Hamlet. Ao recontar a história das 242 vítimas da boate Kiss, nomeando-as, resgatando depoimentos e lembranças de seus familiares, Arbex imbui-se de nos fazer saber e sentir sobre a dimensão humana da tragédia.

Nas 150 páginas (versão gratuita e  digital)*, divididas em 16 capítulos,  Daniela Arbex nos conduz a compreender o antes, durante e depois do incêndio na boate que abateu Santa Maria, no Rio Grande do Sul, no dia 27 de janeiro de 2013. A partir dos depoimentos dos sobreviventes, das famílias das vítimas, dos profissionais de saúde e das testemunhas, conseguimos saber dos pressentimentos que acometeram alguns familiares no momento anterior à tragédia às tomadas de decisões de um jovem que não sabia como sair da boate incendiada. E, ainda, acompanharmos a agoniante procura pelo corpo do ente querido pelos pais de uma vítima.

Imagem da fachada da boate Kiss / Autor desconhecido

O prefácio da obra, escrito pelo jornalista Marcelo Canellas, já adianta o que está por vir: um “inventário de afetos”, que sustenta a narrativa. No decorrer dos capítulos, a tragédia vai sendo revelada através dos seus protagonistas. No primeiro capítulo, acompanhamos o desespero e a angústia do médico Dornelles, que possui vasta experiência com situações de guerra, mas entrou em choque ao ver inúmeros jovens desacordados e no chão recebendo massagem cardíaca na rua da boate. É interessante ressaltar que muitos médicos foram ouvidos por Arbex. Os relatos deles contam como foi difícil conceber que uma atrocidade como aquela havia acontecido. Em meio a choro e profunda tristeza, eles precisaram suspender o choque com a situação, se concentrarem ao máximo em salvar a maior quantidade de vidas que fosse possível e retirar os corpos da boate para que os familiares pudessem ter acesso.

Como conta a autora, uma cena comum era a de jovens que conseguiam sair da boate, mas morriam logo após. Alguns andavam desnorteados, como um jovem que viu sua pele presa somente pelo pulso e se recusava a ir ao hospital. Outros, ainda, entravam novamente na boate a fim de salvar amigos. Dentro da Kiss, o barulho que soava como ensurdecedor dos celulares assinalava a preocupação dos familiares com o incêndio.

O resgate às vítimas era realizado sob dificuldades de diversas ordens. Ao entrar na boate, o sargento Muller deparou-se com uma escuridão que quase inviabilizava qualquer ação. Pediu, então, holofotes à equipe que o acompanhava. O cenário que se apresentava na boate era de “muralha de corpos”. Na entrada e dentro do banheiro, várias vítimas foram encontradas encurraladas. Nos hospitais, a falta de leitos e de equipamentos fez com que centenas de vítimas tivessem que ser transferidas para a capital do Rio Grande do Sul.

O drama vivido iniciava pela notícia do incêndio na Kiss. Daí, vinha a incerteza se o filho havia ido à boate ou não. Quando confirmado, os pais começavam a procurar pelos filhos. Muitos se aglomeraram na porta da boate na esperança de ter alguma informação. A única que recebiam era a de que o melhor a se fazer seria passar pelos hospitais de Santa Maria. As especulações sobre o estado das vítimas atormentavam seus familiares. Eis, aqui, o momento que a narrativa nos sufoca.

A identificação das vítimas era dificultada por entraves que iam desde a fumaça que, em certa medida, desfigurou alguns corpos, até pela falta de documentos que comprovariam a identidade dos mortos. Esse era mais um fator que angustiava os familiares e exigia que cada leito fosse conferido. Por conta disso, as vítimas passaram a ser identificadas pelas características do corpo, como pintas e tatuagens.

Imagem da homenagem às vítimas / Autor desconhecido

Conforme as horas iam passando, o número de mortos aumentava exponencialmente. Tal realidade fez com que os corpos fossem transferidos para o Centro Desportivo Municipal Miguel Sevi Viero para facilitar o reconhecimento dos mortos pelos familiares e possibilitar o enterro. Muitos pais colapsaram ao entrar no ginásio.

O sentimento de ajuda foi bastante manifestado, tanto por instituições federais, como a polícia rodoviária, quanto pelos amigos das vítimas. Entretanto, cenas inadequadas, desrespeitosas, deselegantes e vergonhosas também se fizeram presentes.

Um homem foi flagrado tirando fotos dos cadáveres e, salvo a presidenta da República à época, Dilma Rousseff, todos os políticos entraram no ginásio antes dos familiares. Funerárias aproveitaram a grande “demanda” para superfaturar os preços dos caixões e, com o passar das horas, estes foram esgotando. Ou seja, houve casos de famílias que não conseguiram enterrar seus entes queridos. Sem caixão, vela e flor, a dor da perda parecia haver aberto uma ferida incurável.

Uma pergunta que atravessa o livro e que é discutida nos últimos capítulos diz respeito a como o funcionamento da boate foi permitido pelas autoridades públicas, mesmo sem ter os alvarás necessários para tal. Depois dos relatos chocantes dos sobreviventes e das famílias, nos cabe perguntar: “por que foi permitido?”. A ferida aberta na memória no dia 27 de janeiro de 2013 é um lapso quebrado com o tempo. A hermenêutica tão necessária à continuidade da história tem enfrentado manobras de quem deveria garantir  justiça e condenação aos culpados.

Parentes das vítimas que foram processados / Autor desconhecido

A tragédia anunciada foi negligenciada e continua sendo. Um pedido de arquivamento parcial do inquérito aos servidores municipais indiciados foi requerido à justiça. Dos 18 indiciados, apenas oito dos que respondem continuam a ser responsabilizados. Três pais de vítimas foram indiciados por calúnia por terem escrito textos a jornais manifestando seus descontentamentos e indignações com o processo e seus nefastos desdobramentos.

Daniela Arbex empreende um esforço singular e competente ao resgatar “as histórias não contadas sobre a boate Kiss”. A jornalista relata o invisível ou pouco comentado sobre o crime. O processo de narração das histórias que compõem o livro colocam em evidência o respeitoso e cuidadoso posicionamento da autora frente às 242 vidas tiradas (por negligência e irresponsabilidade) e de suas famílias. O papel dos livros escritos por jornalistas têm justamente esse dever: dar nome, sobrenome e tornar visível a pessoa que existe para além de um número.

*Há duas versões do livro: a digital (gratuita e a paga) e a física. A versão digital gratuita conta com 150 páginas. Já a versão digital paga e a física, com 248.

 Foto divulgação: Editora Intrínseca / Autora: Daniela Arbex/ Lançamento: 19.01.2018

Ver +

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *