Reflexões sobre o trabalho escravo antigo e moderno
Neste artigo, algumas reflexões sobre como modalidades degradantes de trabalho ainda existem em todo o Brasil
Por Victoria Souza
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Há quase 133 anos atrás a escravidão acabava no Brasil (um dos últimos países a realizar tal ato no mundo, por sinal). No entanto, após anos de lutas para o fim da escravidão, diversos casos continuam aparecendo espalhados pelo país de pessoas exploradas em regimes análogos à escravidão. Além disso, o trabalho contemporâneo que exige cada vez mais do colaborador e oferece cada vez menos, tem se popularizado como uma espécie de trabalho escravo moderno.
Artigo XXIII – 1. Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
2. Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.
3. Toda pessoa que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.
4. Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para a proteção de seus interesses. Artigo XXIV – Toda pessoa tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.
Os artigos acima fazem parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Lendo hoje em dia, parece mais utópica do que os filmes de príncipe encantado da Disney. A estimativa das Nações Unidas é de que existam 40,3 milhões de pessoas escravizadas em todo o mundo, produzindo um lucro anual de 150 bilhões de dólares. Diversos produtos que consumimos podem ter resquícios de trabalho escravo; seja na extração de materiais, seja na construção de brinquedos, eletrodomésticos ou equipamentos eletrônicos.
O trabalho escravo desta forma ainda é um mercado bilionário que enriquece cada vez mais empresas, que fazem parte do que foi definido aqui no Brasil de “Lista Suja” das empresas que continuam explorando pessoas ao redor do país, pagando salários péssimos e deixando espalhados como resultado; pessoas doentes, cada vez mais pobres e sem dignidade alguma.
No ano de 2021, o dia nacional de combate ao trabalho escravo (28/01) está comemorando 17 anos de existência. Nessa mesma data, comemora-se também o dia do Auditor fiscal (instituído no ano de 2009) em homenagem a 3 auditores fiscais e um motorista que foram assassinados no ano de 2004, enquanto investigavam denúncias de trabalho escravo nas fazendas de Minas. Mandante e assassinos, apesar de confessarem o ato, hoje em dia respondem ao crime em liberdade.
O trabalho escravo não é um problema específico de cidades desestruturadas e pequenas, é um problema global. Até mesmo a maior cidade do país não conseguiu ainda se livrar da chaga que é o trabalho escravo. Na região central de São Paulo, por exemplo, diversas fábricas clandestinas são fechadas e pessoas resgatadas do trabalho análogo ao escravo anualmente.
São geralmente estrangeiros (bolivianos, venezuelanos) que vem de países mais pobres que o Brasil procurando melhores condições de vida e aceitam os subempregos como forma de se sustentar, manter a família e em alguns casos, pagar os “coiotes” que os trouxeram para o país ilegalmente.
Essas pessoas são escravizadas, obrigadas a trabalhar exaustivamente em local sem higiene alguma e muitas vezes nem recebem um pagamento adequado.
Logo no início de 2021, o caso de Madalena Gordiano, uma mulher de 47 anos, chocou o país. A mulher viveu por 38 anos em condições análogas à escravidão, sendo privada dos direitos básicos de estudar, ter um salário e uma vida digna. Madalena foi explorada pela família que a “acolheu” e teve ainda sua pensão desviada para fins de estudo e sustento do padrão alto de vida dessa mesma família.
Casos como esse continuam nos surpreendendo e demonstrando o quanto a cultura do Brasil ainda é extremamente arcaica e os avanços continuam sendo muito mais lentos do que deveriam.
Sem sombra de dúvidas, o período de 3 séculos de escravidão tem consequências diretas nas situações de trabalho escravo encontradas em diversas partes do país ainda hoje, especialmente em cidades pequenas e ainda enraizadas em famílias tradicionais como a que explorava Madalena.
Importante também dizer que além do trabalho escravo direto, com a modernidade, surgiram problemas relacionados ao trabalho contemporâneo que precisam ser debatidos. Os principais exemplos estão relacionados às alterações nas leis trabalhistas e o próprio home office, motivo para o aumento de casos de estresse durante a pandemia.
Home office e Terceirização. Trabalho escravo da modernidade?

Com a pandemia, diversas empresas flexibilizaram seus horários de trabalho e adotaram o home office como forma de continuar a vender seus produtos e serviços. O grande problema dessa modalidade de trabalho foi justamente o aumento da carga horária de trabalho, uma vez que as pessoas passaram a trabalhar muito mais em casa, principalmente as mães solo.
O aumento das reuniões, a carga horária em dobro e o desgaste emocional mesmo estando em casa, podem se configurar como trabalho excessivo e diversas instituições estão se mobilizando para que as empresas adotem regras mais claras para o trabalho a distância.
Assim, o tal do novo normal exigiu que tanto empresas como funcionários criassem um ritmo diferente para não prejudicarem as entregas e principalmente a saúde mental de todos (tema atualíssimo). Além disso, os próprios colaboradores enxergam a necessidade de fazer pausas curtas mesmo em casa para conseguir manter um bom ritmo de trabalho.
Quanto à terceirização, as principais desvantagens mais uma vez estão “nas costas” do trabalhador. Muitos afirmam que a terceirização de serviços é vantajosa apenas para as empresas.
Os funcionários recebem menos e tem poucas garantias profissionais também para executar seus trabalhos, além do risco de perder direitos trabalhistas.
Os críticos da terceirização afirmam ainda que os trabalhadores terceirizados são tratados de maneira diversa com relação a um funcionário CLT. O que vale refletir é o quanto a terceirização pode prejudicar os direitos legais dos trabalhadores e como atenuar e evitar as catástrofes que podem tornar essa modalidade mais uma opção de trabalho escravo da modernidade, assim como o home office sem regras tem se popularizado.
É preciso analisar com muito cuidado tanto a modalidade home office quanto as novidades com relação aos serviços terceirizados. Renunciar aos direitos trabalhistas adquiridos após tantas lutas e não enxergar o colaborador como um ser humano, é um dos maiores erros que as empresas podem cometer.
É preciso entender que por mais automatizada, tecnológica e inovadora que a empresa seja, as pessoas continuam e continuarão sendo o ativo mais importante de qualquer negócio.
Resumindo…O que falta fazer?
Muito! O combate ao trabalho escravo ainda representa uma luta árdua para nossa sociedade.
A própria máquina pública para o combate desse tipo de trabalho continua contando com poucos recursos, além do desafio de administrar os dados para tomar medidas mais eficazes no combate. O Brasil não é um país totalmente atrasado nessa questão quando comparamos países mais pobres do mundo, mas obviamente enxergamos uma lentidão catastrófica para resolver com mais eficácia e rapidez o problema.
É necessário que a escravidão que ainda teima em aparecer no país seja amplamente combatida em especial pelas empresas e sociedade. Por exemplo, ao descobrir que uma empresa explora as pessoas em determinada comunidade para colocar na sua mão aquele produto que você tanto ama, simplesmente não compre (esse é o papel do cidadão). Já a empresa, deve optar por dar dignidade e respeitar os direitos de seus trabalhadores cumprindo seu papel na sociedade.
Após essa análise, precisamos entender que apesar de alguns avanços tímidos, a questão não foi superada e o exemplo disso são casos como o da Madalena que continuam surgindo e tentativas frequentes das empresas de desrespeitar os direitos dos colaboradores.
Sendo assim, é necessário encontrar soluções mais eficientes unindo sociedade, governo e empresas. Logo, o questionamento que fica é:
quando efetivamente iremos comemorar o fim da escravidão?
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1 Comment
Parabéns, por esse artigo. Continue assim 😀😀