Quem bate? E quem apanha?

Algumas reflexões sobre a atualidade das discussões e estudos sobre violências estruturais e a atuação dos profissionais de atenção primária

Por Reynaldo de Azevedo Gosmão

As discussões e estudos sobre violências são históricas. Nesse texto irei propor algumas reflexões que não visam limitar a temática, pelo contrário, pretendo levantar mais a questão. Partirei de três pontos reflexivos sobre a temática:

1º – É indissociável refletir sobre as violências sem as marcas do machismo que é estrutural, ou seja, é difícil pensar algo que não sofra derivações dessa lógica: não só os sujeitos, mas as ciências e as atuações profissionais são atravessadas pelo machismo, tecendo narrativas para o nosso cotidiano, que marca pontos e limites entre o estranho e o natural, entre o certo e errado, e como nossos sentimentos e corpos devem ser geridos.

Usando uma compreensão proposta por Vladimir Safatle, no livro “O circuito dos afetos” (2015) os papéis sociais estão imbricados em um circuito de afetos que basicamente se resume na forma de adesão do sujeito ao meio social. 

Pensando no machismo como engrenagem do “fazer social”, como os sujeitos nesse contexto, trabalham o seu ódio? Quais as narrativas sobre o que é “ser” homem e o que é “ser” mulher? 

Para exemplificar, podemos retomar algumas questões que são vivas no nosso imaginário social, como a frase “homem não chora”: 

Se os homens não podem chorar, como dar vazão ao ódio e a raiva? Através da agressão?

Outro ideal é o “da mulher para casar”, que se desdobra na “bela, recatada e do lar,” que foi narrada por uma ex-primeira dama do Brasil. Se depreendemos o significado da palavra “recatada”, temos como significação a mulher “Tímida; que zela ou protege a sua própria reputação”. Podemos ir além, se pensarmos no caso da deputada Flor de Lis: mandou matar seu próprio marido, para manter o ideal na sociedade que ela é a mulher bela, recatada, do lar e pastora.

Então no machismo, escorre sangue para todos os lados, ao passo que os incômodos não podem ser ditos, mas são encenados a partir de atos violentos. 

2º – O profissional da atenção primária tem que atuar em um campo ético (por que existe uma grande diferença entre discutir intelectualmente sobre ética e praticá-la). É preciso sair dos discursos moralizantes, porque as políticas sociais não devem ser um ctrl+c e um crtl+v / “copiar e colar”, nem uma política de hostilidade aos homens agressores ou revitimização da mulheres. 

Para isso nossa atuação demanda que não recuemos frente às contingências jurídicas, diagnóstico médico, e as questões familiares que chegarem como demanda. O que vai permitir uma mudança de lugar desses sujeitos frente à violência é um trabalho de escuta, multidisciplinar e social. 

3º – Nem todas as marcas sobre as violências são condições dadas a priori pelo social. Existem o inconsciente que atravessa os sujeitos e, para que haja trabalho subjetivo, é necessário muita escuta, porque o ‘estar’ violento pode estar embutido uma rede de significados ocasionados por diferentes contingências e marcas. 

Para atuar no campo ético, nós temos que ir à direção de aprender a nos ouvir para escutar o outro, e principalmente, para que os sujeitos sustentem o ódio, não pelas vias das violências, psicológica, física, sexual, patrimonial e moral. 

Através de uma escuta efetiva que é possível dialetizar, rompendo com essa lógica de polos opostos, entre o bem e o mal, quem bate e quem apanha, ou quem merece ser atendido no sistema da saúde ou não.

Imagem destacada: Gerd Altmann por Pixabay

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