Queimam nossos direitos enquanto a fluição da vida não fluir

A Anistia Internacional é um movimento com 10 milhões de pessoas que mobiliza a humanidade que existe em cada um de nós, fazendo campanhas que produzem mudanças para que possamos desfrutar de nossos direitos humanos. Por isso, o novo relatório da Anistia Internacional, chamado “Parem de queimar nossos direitos – O que os governos e as empresas devem fazer para proteger a humanidade diante da crise do clima” elenca medidas URGENTES que governos e empresas devem adotar. Por outro lado, acreditar que podemos agir com solidariedade e esperança por todas as pessoas é algo que pode mudar nossas sociedades para melhor, e para que isso aconteça, devemos estar atentos e passar a olhar para aquilo que os povos originários estão nos dizendo sobre a urgência climática.

Por Vitor Ranieri

Estamos agora olhando para quais são as possibilidades para a efetividade de tudo o que viemos discutindo ao longo do ano, com mais intensidade nas últimas semanas. Há um novo fôlego, ventos que trazem possíveis efetividades para a garantia dos direitos pelos quais lutamos diariamente.

Mas nós nos encontramos ainda nas estagnações da dialética, das burocracias e das não efetivações do que acreditamos. Entre uma conferência com discussões profundas e outra, quando conseguimos molhar os pés na fonte da reflexão, podemos nos perguntar de onde nasceu o sonho do gentil apocalipse convidando à vida, a concepção da juventude frágil, inserida e construída socialmente para deslegitimar a potência exacerbada dos nossos questionamentos.

Ao longo de décadas, são essas máximas que fundamentam algumas das chamas que abrasam as lentes, as percepções de realidade que partem na maioria das vezes da real natureza ferida, fruto de uma opressão sistêmica que nos torna muitas vezes incapazes de transbordar o que somos, nossos instintos, nossas diferenças e nossas diversidades inerentes à humanidade. São criações de um modelo mental que prega o utilitarismo das coisas, dos processos e da vida. Mas, como diz Ailton Krenak, a vida não é utilidade, é fruição.

Ainda estamos vivenciando uma pandemia e, no momento em que publico esse texto, estamos nos aproximando do fim do ano. Foram muitos desafios, dores, sofrimentos, crises, dificuldades superadas. Só de estarmos vivos é motivo mais do que suficiente para agradecermos! Centenas de milhares de pessoas não conseguiram sobreviver ao Covid-19 aqui no Brasil. Ainda mais sem análise científica, sem uma avaliação concreta dos danos causados, sinto que nos tornamos subitamente um território de experimentação; eu tento forjar positividade para falar dos aprendizados que podem ser adquiridos ao contemplar o modo de ver a vida dos povos originários, mas acabo ficando satisfeito em conseguir me concentrar nas pequenas tentativas de manter a mente sã e a imunidade em dia.

“A vida não é para ser útil. Isso é uma besteira. A vida é tão maravilhosa que a nossa mente tenta dar uma utilidade para ela. A vida é fruição. A vida é uma dança. Só que ela é uma dança cósmica. E queremos reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária. Queremos reduzi-la a uma biografia: alguém nasceu, fez isso, fez aquilo, fundou uma cidade, inventou o fordismo, fez a revolução, fez um foguete, foi para o espaço. Tudo isso, gente, é uma historinha tão ridícula… A vida é mais do que tudo isso. Temos de ter coragem de ser radicalmente vivos. E não negociar uma sobrevivência.”

Ailton Krenak

A notícia real é que, mesmo diante dos diversos conflitos, diálogos e acordos vivenciados ao longo dos últimos anos, nada foi realizado na 27.ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas, designada por COP 27, que decorreu nas duas primeiras semanas de novembro, em Sharm el-Sheikh, no Egito — infelizmente, nada que realmente tenha valor, de qualquer maneira, para a urgência que enfrentamos. Em outras palavras, a economia continua sendo considerada mais importante do que o meio ambiente, o greenwashing é escrachado. Por outro lado, sem nenhuma ação relevante dos políticos, os cientistas decidiram abandonar sua ‘neutralidade’ e começaram a explicar a todos os que estão vivendo felizes para sempre que suas vidas estão em risco e, esperançosamente, com os cientistas finalmente dando esse passo à frente, o público poderá ficar tão petrificado que forçará seus políticos a agir – pelo menos esse é o nosso anseio mais genuíno.

Contudo, encontrar um respiro em meio ao caos de lidar com os limites que envolvem enfrentar a solidificação do ambiente de frustração em que vivemos, eventualmente pode ser considerado quase uma blasfêmia no estado não tão laico em que vivemos.

Da mesma forma que a religiosidade nos é vivida desde o berço, por um instante nossos pais acharam que essas discussões tinham deixado de ter respaldo no século XIX, quando os berços ainda eram madeiras muito bem trabalhadas para abrigar as gerações futuras. Porém, a indiferença ou falta de compromisso dos decisores políticos com nosso clima é cíclica, e talvez, seja ainda mais pertencente a um ciclo sem fim as reações raivosas e desprovidas de lógica, conhecimento ou sensibilidade diante de conteúdos que alarmam a gravidade das situações nas quais que estamos inseridos.

Estamos assistindo a discursos muito perigosos para a continuidade da democracia brasileira, conquistada a duras penas. Segundo a Anistia Internacional do Brasil, o futuro de toda a humanidade está em grande risco, e o presente de milhões de pessoas já está ameaçado, com o aprofundamento de inúmeras desigualdades. A organização avalia que os esforços dos Estados para enfrentar as mudanças climáticas continuam muito abaixo do que é preciso para que a situação possa ser revertida. A maioria dos países industrializados continua sem controlar as emissões poluentes de modo satisfatório, além de as autoridades públicas no Brasil que têm contribuído para que haja um desmonte da agenda ambiental, como explicado por Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil – mas não há mais espaço para o negacionismo. Você pode saber mais sobre o relatório anual realizado que resume as complexidades expandidas e preencher o formulário que irá encontrar abaixo, disponível no site da Anistia:

Agora que você já foi lá e soube quais caminhos estão sendo indicados para reduzir os impactos das mudanças climáticas e proteger os direitos desta e das futuras gerações. Percebo que o mais tocante de tudo o que tem acontecido se expande sobre como podemos propor juntos soluções para a construção do sonho conjunto que pode alimentar a egrégora de vida e bem-estar. Não apenas embasados no conceito que representa a força espiritual, mas também na aplicação de políticas que assegurem o direito de termos um futuro. E aí, talvez se encontre o grande chafariz de água fluída que apague as labaredas quentes que destroem nossas possibilidades de real subsistência.

Os novos ventos ditos na abertura desse texto são ventos de esperança, acompanhados de muito movimento para frear a destruição dos direitos fundamentais que estão sendo desassegurados e ameaçam o acesso à água, aos alimentos, à moradia, à saúde, ao saneamento, ao trabalho, entre muitos outros.

A Organização Mundial de Saúde já prevê que as mudanças climáticas devem provocar 250 mil mortes a mais, por ano, nos anos entre 2030 e 2050. Ou seja, estamos falando da avalanche do sonho apocalíptico sendo verbalizado em múltiplos canais, mesmo que ainda estejamos vislumbrando o drama contínuo de Elon Musk queimando o Twitter. E talvez você se pergunte: o que tem a ver o Elon Musk com a crise climática? Mas a verídica hipérbole de que nem uma única pessoa com poder mudou suas ideias e sua forma de agir porque seus seguidores ‘discutiram’ isso com eles pode me permitir fazer o comparativo de que podemos acreditar que a provocação sistemática de mudança efetiva não irá partir apenas da discussão.

O diálogo é uma ponte, mas pensarmos ativamente na quantificação dos desdobramentos de tanta conversa talvez inicie a contemplação de meios alternativos, dos novos fluxos de ar tão necessários para apagar fogo em grande escala.

Como bem agradece Idelber Avelar em um dos seus textos, obrigado, mestre Ailton Krenak, por todo o respeito profundo pela natureza e seus recursos. Ele sabe e traz muito disso na sua fala, sabe como devemos apenas usufruir o que a natureza nos dá, jamais possuí-la, jamais devassá-la!

Alguns dos livros mais históricos já escritos nos últimos tempos, por exemplo, embasam suas narrativas com suas raízes fincadas na cultura indígena. Desde que li, A Queda do Céu, de Davi Yanomami Kopenawa e Bruce Albert, por exemplo, constatei que é um dos livros mais importantes do século XXI. Porém, para o sistema ultra capitalista no qual estamos inseridos, pensar conforme as proposições da catarse literária é no mínimo ingenuidade. A queda do céu é um livro “feito no Brasil”, mas não dá para dizer que seja um “livro brasileiro”, já que se escreve a partir de algo bem maior que o Brasil, que é anterior a ele, o transcende e o torna possível: a Amazônia. A Queda do Céu é uma autobiografia do Xamã Kopenawa, um relato da cosmogonia yanomami, uma auto-etnografia do povo yanomami, mas é também uma ferina e mordaz contra-antropologia do povo branco, o povo da mercadoria. O livro relata as incursões, invasões e agressões do povo da mercadoria aos ameríndios e à terra na qual e com a qual eles vivem e é um dos mais ricos testemunhos já escritos das políticas dos governos brasileiros do século XX sobre a Amazônia.

Mas, A Queda do Céu é, sobretudo, um livro programático, uma intervenção ativista desassombrada que vem acompanhada de previsões sombrias caso se mantenha o modelo imposto pelos brancos. Há parágrafos que hoje, durante a pandemia do Covid-19, se deixam ler de maneira profética. Muito destes aprofundamentos são tratados a partir do “apocalipse” proposto por Krenak, que nos diz em uma das suas obras o que estão dizendo também os cientistas do clima: isto é insustentável e o fim da espécie e da própria possibilidade de vida tal como a conhecemos está próxima se não alterarmos o rumo. Krenak não é o profeta do apocalipse, Krenak mostra que outro mundo é possível. E ele, aliás, tem no livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo, que inclusive pode ser lido gratuitamente pelo Kindle, algumas palavrinhas para quem pensou muito nos termos de “quando as coisas voltarem à normalidade”.

Por fim, podemos acabar concluindo que ser radicalmente vivo é estar completamente conectado com o aqui e agora, cuidando mais de si mesmo, das relações e dos recursos da natureza. Os livros citados aqui foram os mais lúcidos, lindos e delicados que li este ano. Existem várias agendas com recomendações aos estados, a nós, sobre os deveres que devemos seguir, mas acredito que as respostas já estão postas muito antes dos processos cognitivos gerados após o vislumbre da queimada dos nossos direitos surgirem. Nós podemos internalizar em algum momento que a fruição da vida é infinitamente melhor do que a vida como mera utilidade.

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