Pensar o mundo a partir do meu território
Em seu artigo preparado para o ‘Mapeamento Jovens Transformadores para o Futuro da Democracia’, Mariana Belmont convida cada um de nós a refletir sobre a cidade em que gostaríamos de viver, nosso sonho humano de lugar, nosso compromisso de transformação social.
Mariana Belmont*, Jovem Transformadora pela Democracia
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É sempre importante dizer de onde a gente vem. Então, é necessário começar este texto explicando que eu nasci no bairro da Colônia, extremo sul da cidade de São Paulo. Um bairro bem na margem da cidade. Um território rural e urbano entre duas represas, um extenso e necessário território indígena. Um lugar construído por indígenas, negros e nordestinos, em sua maioria mulheres fortes.
Sair deste bairro muito rural, muito longe do centro de São Paulo, e circular pela cidade era algo muito difícil. Fiz isso algumas poucas vezes entre a infância e a adolescência. Em compensação, conheço cada canto de Parelheiros [o distrito maior, onde fica o bairro Colônia], mas é sempre uma surpresa trafegar pelas estradas da região, olhar o horizonte longe. Sentar na escada do sítio do Jamil e olhar o “cavalo branco passar”. Sabe aquela serração? É o choque de ar quente do litoral com ar frio da Serra do Mar, criando um cenário fantástico na floresta. É lindo mesmo!
Fronteiras não são apenas linhas traçadas sobre territórios, mas são também limites dentro de nossas percepções, das nossas histórias familiares, das dificuldades sociais e têm a ver com nosso cotidiano. Os territórios são criados em nossa imaginação, desde a infância. Por exemplo: quais são nossos limites de passos, com quem andamos pela cidade ou a ideia que define até onde você vai ou não sozinha. No meu bairro, eu ia até a padaria sozinha, traçando sempre a linha tênue entre a calçada e a rua, com quem falar e aonde não ir.
[Fecho os olhos e posso ver a dinâmica de faxina lá de casa. Levantar no sábado às 8h com uma preguiça desgraçada, meu padrinho já tendo levantado três horas atrás, o café já pronto e o pão fresco com mortadela na mesa. Meu padrinho começava a tossir na sala para que eu levantasse logo, porque o ritual dele era, antes de qualquer coisa, pendurar o tapete no quintal e socar com a vassoura e depois pegar a mangueira e lavar. O sol era tão forte e bonito aos sábados que, no final do dia, o tapete enorme já voltava para o chão da sala].
Escrever sobre a cidade que gostaríamos de viver e pensar quais seriam suas formas e traçados é importante para registrar na história nosso sonho humano de lugar. Um ambiente mais acolhedor, antirracista, antimachista, menos sujo, menos desigual e com mais cara de casa. Uma cidade visionária.
Todas essas cidades que pensamos, por mais distantes que estejam, encontram-se ali, no final da estrada das desigualdades sociais.
Mas qual é mesmo a cidade que precisamos viver? Qual é a ideia de território seguro para conseguirmos dormir e acordar? Precisamos planejar com urgência para resistir e viver? Existem muitas formas. Todas são políticas e todas são possíveis. Temos então mais um espaço para refletirmos sobre como não vamos conseguir salvar o mundo, mas, sim, sobre como podemos transformar minimamente realidades para sobrevivermos diante da barbárie, do absurdo diário do atual governo e da nossa história colonizada.
E acho que é nesse balanço e movimento do mundo que quero estar, fazendo conexões, construindo horizontes possíveis para vivermos em um país cada vez menos desigual e marcado pelo extermínio da população das pessoas.
Como jornalista e ativista do Ocupa Política, escrever, existir e movimentar pontes e articulações são coisas que eu gosto e faço sem problemas. Com intensidade e com o foco no mundo.
Viver e sobreviver em rede, em articulações, coalizões é aprendizado de como lidar com o mundo e as pessoas. Para sobreviver em uma sociedade cheia de problemas e desigualdade social, é fundamental a gente olhar coletivamente para um horizonte e planejar o mundo a partir de nossos territórios.
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Mariana Belmont é colunista do ECOA-UOL, faz parte da Rede Jornalistas das Periferias, Uneafro Brasil e Nuestra América Verde. Contribuiu com iniciativas de inovação e democratização dos mandatos legislativos. Participou, por exemplo, da construção do Ocupa Política, uma articulação nacional que busca inspirar e fortalecer a candidatura de ativistas e coletivos sociais, para que eles estejam preparados para entrar na política institucional.

SOBRE O PROGRAMA
Re-imaginar a participação cidadã dos jovens e um futuro no qual todos, independentemente de sua origem, tenham voz na formulação de políticas e na tomada das decisões que impactam suas vidas. Este é o propósito do estudo Jovens Transformadores para o Futuro da Democracia, realizado pela Ashoka em parceria com a Open Society Foundations.
O programa Jovens Transformadores pela Democracia identifica e apoia jovens cujas iniciativas incentivam o engajamento político, principalmente por parte de populações marginalizadas, que não têm seus direitos respeitados ou que necessitam de apoio para conquistar representatividade no âmbito público.
SOBRE A ASHOKA
A Ashoka é a pioneira e maior rede global de empreendedorismo social. Congrega pessoas e organizações que promovem mudanças sistêmicas para o bem de todos. Dedica-se a consolidar um movimento onde todas as pessoas se entendam como agentes na construção de sociedades justas, sustentáveis e igualitárias. Criada em 1980 e presente desde 1986 no Brasil, a comunidade Ashoka reúne mais de 3.800 empreendedores sociais no mundo (384 no Brasil), além de 300 Escolas Transformadoras e dezenas de Jovens Transformadores. Saiba mais em https://www.ashoka.org/pt-br
Este texto foi originalmente publicado no canal da Ashoka Brasil no Medium.