Pacto da Branquitude

Reflexões sobre o livro de Cida Bento, destacando a importância de refletir e entender a questão racial e a herança de privilégios resultantes da escravidão e colonização, que perpetuam desigualdades.

Por Amanda Costa

Olá minha lindeza climática <3

Essa semana conversei com um amigo que admiro muitoooo, sobre minha decisão de parar de trabalhar de graça. Ele me chamou no direct do Insta e disse que meu texto tocou a sua alma e o levou a refletir sobre muitas coisas, principalmente, sua raça e suas “oportunidades”.

Ele disse uma frase que me marcou: “Sabe Amandinha, muitas vezes eu achei que ainda não tinha chegado lá pois não era bom o suficiente. Hoje eu entendo que existe um sistema que privilegia as pessoas brancas.”

Eu respondi que isso também aconteceu comigo. Por muito tempo eu pensei que ainda não tinha alcançado oque eu desejava porque eu não estava me esforçando o suficiente… Que bastava eu estudar mais, trabalhar mais, militar mais. Se não cabia na agenda, eu deveria dormir menos, almoçar mais rápido, trocar as atividades de lazer por atividades de produção!

O resultado? Eu me sentia triste, sugada e exausta…

Sempre gostei muito de estudar, e minha amiga Camila Berteli me aconselhou a deixar os livros de coach de lado para me aprofundar no tema de raça. Foi libertador! Ainda estou no processo, mas sinto que uma venda foi arrancada dos meus olhos. Hoje realmente entendo que meritocracia não existe e que a escravidão e a colonização deixaram uma herança de privilégios que fundamenta um sistema que favorece principalmente as pessoas de pele branca, que hoje são netos e bisnetos dos antigos escravocratas.

Essa galera se protege, viu? Todo esse conceito está dentro de uma teoria criada pela pesquisadora Cida Bento, chamada de Pacto Narcisístico da Branquitude.  

Querida leitora, precisamos falar desse tema urgente! Refletir, debater e entender a história para acabar com todo o comportamento de expropriação, violência e brutalidade que pessoas brancas praticam, seja de forma consciente ou inconsciente, que afeta pessoas negras e indígenas.

Fala-se muito na herança da escravidão e nos seus impactos negativos para as populações negras, mas quase nunca se fala na herança escravocrata e nos seus impactos positivos para as pessoas brancas.

Cida Bento

A real é que não temos um problema negro no Brasil, temos um problema nas relações entre negros e brancos. É a supremacia branca incrustada na branquitude, uma relação de dominação de um grupo sobre outro que atravessa a política, cultura e economia, assegurando privilégios para um dos grupos e relegando péssimas condições de trabalho, de vida, ou até a morte, para o outro.

Toda essa lógica atravessa GERAÇÕES e a perpetuação dessa relação de domínio só será interrompida quando as pessoas brancas estiverem dispostas a deixar seus privilégios de lado e se empenhar em construir uma sociedade verdadeiramente antirracista.

O que deixa todo esse papo complexo é que a galera branca raramente quer falar sobre ele.

  • Ah, isso é papo de gente mimizenta.
  • Racismo não existe. Somos todos iguais.
  • Quem quer consegue. Só reclamar menos e ir trabalhar!

Queria eu que fosse tão simples assim! Não dá para resolver aquilo que evitamos falar e as formas de exclusão e de manutenção de privilégios são sistematicamente negadas ou silenciadas. É como se esse pacto da branquitude tivesse um componente narcísico de autopreservação, no qual o “diferente” (negro/indígena) ameaçasse o “normal”, o “universal” (branco)

Mas vem cá. Será que meritocracia existe?

De acordo com Daniel Markovits, autor do livro A cilada da meritocracia, a meritocracia pretende justificar desigualdades e criar uma elite que se considera trabalhadora e virtuosa. Esta elite se beneficia das enormes desigualdades em investimentos educacionais e se esforça para oferecer as mesmas oportunidades educacionais aos filhos, passando os privilégios de uma geração à outra, o que vai impactar melhores oportunidades de trabalho e de salários para este grupo. 

Querida leitora, quero tangibilizar nossa conversa com um exemplo.

Há algumas semanas eu fui para o interior de São Paulo gravar um comercial. Para realizar essa atividade, a gravadora contratou 5 jovens modelos: um menino branco, uma menina branca, um menino nordestino, uma menina PcD e uma menina negra. O vídeo teria apenas 30 segundos, mas ficamos o dia inteiro para fazer as cenas. Enquanto não estávamos gravando, aproveitamos o tempo para papear e saber mais sobre o corre um do outro. 

Lembro muito bem da história do menino branco:

  • “ Eu faço faculdade na FGV, mas ainda não trabalho. Escolhi essa faculdade para dar seguimento aos negócios do meu pai. Ele já arrumou um trabalho para mim, com um amigo próximo. No próximo semestre vou estagiar na Coca-cola.

Eu não queria militar naquele momento, mas não consegui me conter e respondi com um sorrisinho:

  • Você sabe que isso tem nome, né? PRI-VI-LÉ-GIO!

Ele ficou um pouquinho sem graça e disse:

  • É… por isso que a gente tem que valorizar…

Eu peguei um caso específico, mas quero te convidar a ampliar o olhar para analisar como essa situação se repete com brancos herdeiros. Não estou falando que pessoas brancas não enfrentam problemas, não me leve a mal. Estou dizendo que muitos brancos se beneficiam de uma estrutura de privilégios e que não estão dispostos a sair desse lugar! 

Privilégio branco é entendido como um estado passivo, uma estrutura de facilidades que os brancos têm, queiram eles ou não. Ou seja, a herança está presente na vida de todos os brancos, sejam eles pobres ou antirracistas. Há um lugar simbólico e concreto de privilégio construído socialmente para o grupo branco.

Cida Bento

A branquitude se beneficia da herança de um estado escravocrata!

Entre 1500 e 1900, a colonização europeia movimentou 18 milhões de africanos escravizados pelo mundo. Antes do começo desse colonialismo, a África e a Ásia eram regiões relativamente ricas e produtivas, enquanto a Europa era economicamente pouco importante. Masssss, eles encontraram um jeitinho de reverter a situação e a Europa tornou-se uma região relativamente rica e a África e Ásia tornaram-se locais com problemas crônicos de pobreza. Essa reversão não é efeito apenas fruto da extração dos recursos dessas regiões, mas também da destruição de estruturas econômicas, ambientais e sociais tradicionais.

Está na hora de revelar a verdadeira história!

O Brasil, por exemplo, se preocupou em prover reparação aos proprietários de escravizados. Em 1871, foi publicada a Lei do Ventre Livre, libertando os filhos das mulheres escravizadas, mas colocando-os sob custódia do senhor, que deveria receber uma indenização do Estado quando a criança completasse oito anos, ou poderia exigir compensação da própria criança, forçando-a a trabalhar até os 21 anos.

Pois é, minha cara leitora, como dizem os Racionais MC’s na música Jesus Chorou: se o barato é doido e o processo é lento, no momento, deixa eu caminhar contra o vento.

Vou caminhar contra o vento e lutar contra todo esse sistema de privilégios que insiste em silenciar a minha voz. Até porque, a história do movimento negro é de resistência e de lutas travadas durante todo o período da escravidão, indo da resistência individual às insurreições urbanas e aos quilombos.

Hoje meu quilombo é meu território de memória, de fortalecimento cultural e de resgate da verdadeira história. Numa sociedade desfigurada pela herança do racismo, eu quero me curar ao lado dos meus, pois sei que, apenas a minha existência questionadora, vai incomodar aqueles que estão no poder. 

“Os negros são vistos como invasores do que os brancos consideram seu espaço privativo, seu território. Os negros estão fora de lugar quando ocupam espaços considerados de prestígio, poder e mando. Quando se colocam em posição de igualdade, são percebidos como concorrentes.”

Cida Bento

Querida leitora, não estou aqui para dizer a verdade. Mas desejo, do fundo do meu coração, que nossa conversa possa te levar a refletir, questionar e problematizar. Lembre-se: o racismo não é um problema meu, ele é um desafio nosso!


Quer se aprofundar nesse tema? Assista a pesquisadora Cida Bento no Roda Viva da TV Cultura:

Ver +

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *