[OPINIÃO] Por que não libertam Rafael Braga?
Eram 15 horas. O sol estava quente. Havia perdido meu ônibus e me locomovia para pegar outro na entrada do meu bairro. Esperei, e nenhum “Campo Grande” passou. De repente, vitória, vem o bendito, nem percebi o número de placa, só sei que é Campo Grande. Caio pra dentro.
O veículo tá lotado, muito quente naquele sol das 15 horas. Depois de me acalmar percebo o espaço. Pasmo. Das quase 80 pessoas no ônibus, umas 65 são mulheres. E mulheres negras. O único branco era um homem bem idoso que estava antes da catraca.
“Nossa”, pensei, “acho que deve ter havido um encontro de mulheres negras aqui em Viana, estamos precisando”.
Deviam ver, era lindo observar tantos rostos e escalas cromáticas de ser negro. Mas o ambiente estava carregado, além do calor e da quantidade excessiva de pessoas em um espaço tão pequeno, o barulho da conversa era alto. Muitas crianças chorando. Mas o assunto das falas também carregavam um peso, algo trágico:
— Não era para ele fazer isso. — Disse uma delas.
— Agora ele pegou uma pena maior. — Completou outra.
— Foi pego em flagrante. — Ainda enterrou outra.
“Curioso”, pensei.
— Ei, amigo — me dirigi a um menino negro próximo a mim. — De onde vem este ônibus?
— Do complexo penitenciário. — Me respondeu o menino quase como em deboche, dado a obviedade da situação.
Fiquei o resto da viagem em silêncio.
Casos que se repetem
Nas manifestações de 2013 houveram muitas prisões, dentre elas, a de um colega e militante negro, que depois me relatou sua experiência:
“Eu me lembro bem que havia um jovem negro que voltava do trabalho e nem pensava em manifestação, mas foi conduzido a delegacia. Bem como outro jovem lançado no camburão junto comigo. Neste momento nos perguntaram:
— Vocês já tiveram passagem na polícia?
Eu afirmei que não, mas o jovem ao meu lado, que atendia a ideia de “suspeito padrão”, respondeu:
— Sim, Senhor, Já tive.
O policial perguntou qual artigo, ao que o menino, já trêmulo de medo respondeu:
— Artigo 121, senhor.
O policial imediatamente sacou a sua arma, apontou para a cabeça do menino e disse:
— Você é rato! Você sabe o que a ROTAM faz com ratos?
— Sim senhor, eu conheço a ROTAM, mas eu já paguei o que devia. — respondeu o jovem.
Ao conversar com este rapaz mais tarde, ele me disse: ‘era ele ou era eu, me arrependo disso, mas tive que sobreviver’. E nisso vemos a violência como realidade encarnada na vida desta população.”
E a prisão? Segundo meu colega, 98% dos que foram presos junto com ele eram negros, estavam encarcerados em celas com capacidade para seis e comportando 20 pessoas. E todos, no banho de sol, conversavam, oravam, tentavam sobreviver à desumanização imposta. Perguntei-lhe como foi a sensação de estar lá: “No lugar de preso político, me senti como meus ancestrais, preso dentro do navios e senzalas sonhando com a liberdade verdadeira de Mãe África”.
Cada um em seu lugar

Nas mesmas manifestações de junho de 2013, dentre várias prisões realizadas como descritas acima, uma em especial merece nossa atenção: um homem, de pele negra, foi abordado pela polícia e preso sob a alegação de estar carregando materiais de coquetel molotov, quando na verdade eram produtos de limpeza. Seu nome é Rafael Braga e ele está preso até hoje.
No dia 20 de abril de 2017, este homem, durante sua liberdade condicional, foi detido em local próximo à sua casa por carregar, segundo os policiais que o abordaram, 0,6 gramas de maconha, 9,3 gramas de cocaína e um rojão. Ele foi condenado a 11 anos de prisão por tráfico.
Os policiais foram as únicas testemunhas contra o acusado, mesmo havendo outras pessoas com outra opinião sobre o caso que não foram ouvidas pelo juiz. Rafael afirmou que as provas foram plantadas pelos policiais.
O acontecido lembra cenas de filmes hollywoodianos sobre racismo, “Selma” e “Mississipi em chamas”. Casos como o de Rafael nos faz duvidar dos órgãos coercitivos do estado brasileiro e de seus parâmetros do que é definido crime e o que não é.
Por que é normal um ônibus vindo do complexo prisional estar abarrotado de pessoas de determinada etnia e determinada classe econômica? O que faz um sujeito, preso por portar produto de limpeza em uma manifestação, ser o único a continuar encarcerado desde o ocorrido? De onde vem isso? E por que não libertam Rafael Braga?
A resposta parece simples: Porque Rafael Braga está onde a Sociedade brasileira quer que ele esteja. Ele está neste lugar reconhecido como “lugar de negro”. Há um lugar definido para os negros, e este lugar foi forjado a partir do passado escravista que repercute até hoje. Por isso, aqui afirmo: Nossa sociedade é, desde sua fundação, segregada e segregacionista.
A segregação é clara aos nossos olhos. Olhamos para os morros e vemos uma população majoritariamente negra, olhamos os presídios e vemos estes corpos negros desumanizados, procuramos nas cracolândias de nosso país e outra vez os encontramos. A rua é para o carro, a calçada para pedestre e o negro é para a favela, é para o periférico.
Mas se há lugar de negro, então também há lugar de branco. Olhe para as universidades, locais de luz, e verá toda a branquitude anunciada, olhe as grandes empresas e os verá ocupando os grandes cargos.
De fato, na cidade tudo tem o seu lugar. A divisão da cidade se dá dessa maneira: Há em nosso estado, claramente, bairros negros e bairros brancos. Um dia, caro leitor, faça o teste do ônibus, pegue o ônibus de um bairro periférico em direção a um bairro central e análise a escala cromática das pessoas dos respectivos bairros e eu garanto que quanto mais próximo do centro, mais claro tudo ficará.
Não basta apenas a segregação ditar onde cada corpo habitará, mas esta ainda impõe uma função social à cada lugar e aos seus respectivos moradores. Para o branco, historicamente foi designada a função de educar, civilizar, de ser a pureza nacional e o padrão a ser seguido, e isso matando, destruindo culturas inteiras. Afinal, o que foram as colonizações se não tentativas de impor o modo de vida europeu aqueles povos que não eram europeus na justificativa de estarem ensinando a estes povos a verdadeira cultura e humanidade?
E para o negro? A ele restou o lugar de mau social, a personificação do bandido que merece ser morto, o corpo que merece ser violentado, o povo sem cultura. E este lugar se constituiu a partir do chão da escravidão, dos sermões racistas, as pseudo teorias “científicas” higienistas que têm sido vivenciadas no “padrão” de suspeito, na higienização desumanizada da população em situação de rua. A sociedade precisa de um “bode expiatório” e este lugar tem sido imposta ao negro. O lugar que tem sido colocado o negro é este lugar de mau.
Nisso tudo que é relacionado ao negro, é então lido como o mau. Sua música é lida como a encarnação da promiscuidade e da violência, sua fé é demonizada e perseguida, seu bairro é o antro do mal e da selvageria.
Por isso não libertam Rafael Braga, porque ele está exatamente onde a sociedade deseja que ele esteja: preso. Pagando por um crime que nunca cometeu, em um julgamento injusto, pois este ser humano para a sociedade não é mais humano, mas um assassino, naturalmente violento, que deve ser enjaulado e privado de existir.
Por isso não libertam Rafael Braga, pelo racismo de nossas leis, pela parcialidade de nosso judiciário.
Por isso não libertam Rafael Braga, pela formação do órgão coercitivo do Estado, que é o próprio Estado, a polícia que historicamente vem pautando sua atuação em princípios racistas.
Porque não libertam Rafael Braga? Porque ao negro deve-se dar uma cela com lugar para seis comportando 20, porque ao negro a solução é a prisão, onde sua humanidade será destruída e sua sanidade aniquilada.
Porque não libertam Rafael Braga? Porque este é o clamor das classes que de fato mandam neste país. Classes que gritam de seus bairros brancos e que desumanizam tudo que for ligado ao negro. Porque não libertam Rafael Braga? Por RACISMO!
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[…] que sempre que possível participa de mobilizações, o último que presenciou foi o ato em prol da liberdade de Rafael Braga, única pessoa presa nas manifestações de […]