O Efeito Cobra na Sociedade
Uma vez que tenhamos claro o conceito e os riscos do Efeito Cobra, como podemos pautar nossas decisões e opiniões de maneira mais assertiva e responsável?
Por Ana Radaelli
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As cobras são um dos animais mais místicos e carregados de simbolismos do reino animal.
Boa parte do mundo encara a espécie como uma real ameaça à vida humana – não à toa, dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que anualmente ocorrem mais de 5 milhões de picadas de cobra no mundo, resultando em cerca de 138 mil mortes por ano, fazendo das cobras a espécie animal mais mortífera para o ser humano.
Tais números fizeram com que o problema fosse reconhecido como a maior crise oculta de saúde pública do mundo, forçando a OMS a elaborar uma estratégia específica para lidar com a questão de forma a reduzir à metade a mortalidade e a incapacidade causadas por picadas de cobra até 2030, contribuindo com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável Saúde e Bem-Estar (ODS 3) e Redução de Desigualdades (ODS 10), já que a incidência de picadas tem forte correlação com regiões geográficas e recortes sociais.
Tais números tornam o medo de cobras uma reação natural e esperada, mas ela não é a única. Em todo o mundo a ofidiofobia é a fobia mais clássica, principalmente se consideradas apenas as fobias que envolvem animais, mas em algumas culturas as cobras são veneradas e percebidas como seres semi-divinos. É o caso da Índia.
Serpentes na Índia
A relação da sociedade indiana com as cobras é bastante excêntrica para o olhar ocidental. Os encantadores de serpentes são um dos principais símbolos do país e a cobra é um animal muito presente e com papel fundamental tanto na mitologia quanto na religiosidade local.
Essa reverência não é de hoje, há indícios arqueológicos de mais de 3 mil anos que apontam um forte simbolismo das cobras em amuletos encontrados na região e outras sugestões da crença em uma suposta relação do animal com o divino que perdura até hoje na cultura do país asiático.
Isso não acontece porque o risco de ataques de cobras na Índia seja menor que no resto do mundo, pelo contrário, o país registra 275 diferentes espécies de serpentes, sendo 65 delas peçonhentas e 15 especialmente perigosas, resultando em cerca de um milhão de pessoas mordidas por cobras por ano no país.
A diferença é que o medo de cobras, na Índia, se traduz em respeito e não em aversão. O culto às cobras é muito comum devido à crença de que a reverência ao animal seja justamente uma forma de proteção contra possíveis ataques.

Efeito Cobra – Uma História de Intervencionismo
Apesar de trazerem muito conhecimento sobre o panorama vivido, as crenças locais nem sempre são respeitadas pelo olhar estrangeiro, que supõe que suas próprias verdades podem ter mais valor que as verdades alheias.
Um emblemático evento histórico envolvendo a realidade das serpentes na Índia se tornou um marco na ciência moderna e ficou conhecido como o Efeito Cobra.
Na época da colonização britânica no território indiano (1858-1947), as autoridades inglesas, intrigadas com a presença maciça das serpentes, investiram em uma estratégia bastante simples: oferecer pequenas recompensas em dinheiro por cobra morta. A proposta parecia perfeita, já que os próprios cidadãos indianos, que, na visão dos ingleses, eram os que mais padeciam do risco iminente das cobras, poderiam atuar em benefício próprio a partir de um pequeno estímulo dos colonizadores.
Como era de se esperar em uma sociedade colonizada, onde a grande maioria da população vive em condições financeiras precárias e miseráveis, o interesse na recompensa foi ostensivo e gerou bons resultados num primeiro momento, controlando o número de cobras em circulação na região. Até que a recompensa se disseminou como uma possível fonte de renda e algumas pessoas fizeram desse o seu negócio principal, passando a criar cobras para poder, então, lucrar com sua entrega aos colonizadores.
Percebendo que a tendência de que os pagamentos diminuíssem com o tempo não se comprovara, o governo britânico suspendeu a medida. As cobras de criadouros instantaneamente perderam o valor comercial e foram soltas por seus criadores, já que a cultura local não via ameaça alguma na presença do animal. O resultado foi, ao invés do controle da situação, o seu agravamento.
A história virou símbolo de estratégias ineficientes e potencialmente perigosas, fazendo alusão ao próprio movimento do réptil, que parece ganhar uma proporção muito maior que a real no momento do ataque, ataque esse que pode ter efeitos extremamente nocivos se não estivermos prevenidos para reagir a ele.

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Efeito Cobra na Prática
O Efeito Cobra é um ponto de atenção clássico em qualquer área formal do conhecimento, mas ainda encontra dificuldades em se estabelecer na nossa vida cotidiana. Tratamos os fatos ainda com muita superficialidade, esquecendo de basear as argumentações em dados e evidências e não em opinião.
Isso pode ser facilmente identificado em discussões nas redes sociais, baseadas em ofensas pessoais e não no debate de ideias e conceitos, e na facilidade de convencimento e disseminação das fake news, que influenciam decisões importantes, ambas situações que podem carregar consigo consideráveis riscos para os envolvidos.
Exemplos do Efeito Cobra na esfera pessoal são a manifestação de sugestões e opiniões baseadas em nossa experiência pessoal sem considerar a realidade do outro ou quando estabelecemos metas pessoais e profissionais a esmo, sem motivo ou lógica definida.
Meta: comprar um carro até o final do ano.
Efeito Cobra: pouco uso e muitas dívidas de custeio e manutenção não planejadas.
Apesar das boas intenções e tentativas válidas para obter resultados positivos, disseminar informações e sugerir melhorias de qualidade de vida, podemos estar desencadeando efeitos negativos sem nos darmos conta disso.
O risco potencial do famoso achismo na esfera pública já foi bem ilustrado pelo exemplo da Índia Britânica, mas não é fácil encontrá-lo camuflado também na opinião pública? Há ainda grupos enormes de pessoas que defendem medidas contrárias ao que sugerem os dados, como a redução da maioridade penal ou a suposta ineficácia da vacinação infantil, por exemplo.
Outra área frequentemente afetada pelo efeito cobra são as ações do terceiro setor. A atuação em impacto social ainda está em ascensão no Brasil e muitas vezes ocorre sem o respaldo de metodologias consolidadas ou seguindo as devidas Boas Práticas específicas do campo de atuação. Nesse caso, a solução primordial é a consolidação de uma Cultura de Mensuração de forma a validar se o impacto que está sendo gerado é realmente positivo ou negativo.
Moral da História
Hoje, o Efeito Cobra é um ponto de atenção em qualquer área do conhecimento, seja na academia, no mercado, no terceiro setor e até nas relações pessoais. É imprescindível antever as possíveis consequências e efeitos colaterais das medidas implementadas e decisões tomadas para garantir a segurança e o bem-estar dos atores e públicos envolvidos.
Muitas vezes, cegos pela ânsia em colaborar com questões que nos importam ou marcar presença em debates e movimentos da sociedade, tomamos posições impulsivas e até irresponsáveis que podem trazer consequências indesejadas não só para nós como para toda a sociedade ao nosso redor.
Uma vez que tenhamos claro o conceito e os riscos do Efeito Cobra, como podemos pautar nossas decisões e opiniões de maneira mais assertiva e responsável?
Quer saber mais? Confira essas referências:
- https://super.abril.com.br/mundo-estranho/que-animal-selvagem-mata-mais-humanos-por-ano/
- https://www.revistaplaneta.com.br/picadas-de-cobra-causam-200-mortes-por-dia/
- https://news.un.org/pt/story/2019/05/1671281
- https://www.who.int/news/item/06-05-2019-snakebite-who-targets-50-reduction-in-deaths-and-disabilities
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