O boicote ao fast fashion como algo nem tão revolucionário assim: niilismo ou consciência de classe? 

A crise climática que vivenciamos pode ser atribuída a diversos fatores, alguns deles são as questões relacionadas às indústrias que geram resíduos sólidos e desperdiçam água. A indústria da moda é uma das mais prejudiciais nesses quesitos. Nesse sentido, quais medidas podemos tomar para reverter a situação causada por essa indústria? Uma possível solução seria parar de consumir produtos de empresas que seguem o sistema chamado de fast fashion. Mas será que somos nós aqueles que vão fazer algo capaz de mudar o contexto apresentado?

Por Sofia Leite

Sapato descartado no imenso lixão fashion do Deserto do Atacama, no Chile. A produção de resíduos sólidos é uma das principais problemáticas envolvendo a indústria da moda – Foto: Christian Cravo/Reprodução Revista Piauí-Twitter

Nos últimos tempos, incêndios florestais no Canadá fizeram com que voltássemos a falar sobre a crise climática que se alastra pelo mundo. E quando esse debate está em voga, lembramos sempre da indústria da moda e de seus prejuízos para o meio ambiente. No entanto, quando refletimos sobre essa questão, será que sabemos para onde direcionar a responsabilidade pela resolução dela?

Falar da indústria da moda é falar da segunda indústria que mais gasta água a nível mundial, perdendo apenas para a agropecuária. Além disso, ainda produz resíduos sólidos desenfreadamente. Essas problemáticas existem, em parte, por conta do sistema de fast fashion*, que é a produção em massa, de forma rápida, de itens de vestuário, muitas vezes fazendo uso de trabalho análogo à escravidão. Essa rapidez, exigida pelo modo de produção capitalista, faz com que não se dê importância para a qualidade das peças produzidas, já que dedicar a isso algum esforço seria perda de tempo e, consequentemente, de dinheiro.

Com todos esses problemas em vista, que percebemos serem advindos do fast fashion, o mais lógico seria parar de consumir produtos feitos dessa forma e lutar para que as outras pessoas não os consumam também. Entretanto, ao analisar essa solução com um outro olhar, é possível entender que se trata de algo extremamente elitista. Lutar para que haja um boicote contra marcas como C&A, Renner e Riachuelo é muito injusto com boa parte da população brasileira.

O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, segundo estudo realizado pelo World Inequality Lab (Laboratório das Desigualdades Mundiais). Em um país tão discrepante assim, podemos imaginar que roupas produzidas em um sistema de slow fashion*, o contrário do fast fashion, não são acessíveis para todos, já que elas precisam ser mais caras para compensar os custos maiores nas etapas de fabricação.

Além disso, a realidade de muitos brasileiros é não comprar roupa nova de jeito nenhum, porque não sobra dinheiro para isso no final do mês. A solução encontrada por essas pessoas é reutilizar roupas de parentes que, por algum motivo, não servem mais para eles. Essa é uma forma muito sustentável de consumo, que convencionamos chamar de moda circular. A moda circular consiste nas formas que encontramos de prolongar a vida útil de uma peça, seja comprando em brechó, seja usando as roupas que os familiares já não querem mais.

Mas será que essas pessoas não deveriam ter direito a roupas novas? Quando você é privado a vida inteira de ter acesso a itens novos por conta da falta de dinheiro, o ato de vestir algo que ninguém nunca usou se torna muito simbólico. Em um país tão desigual como o nosso, esse ato pode ser visto como um símbolo de ascensão social. E, muitas vezes, a parte da população que passa por essa situação de privação só vai conseguir realizar isso por meio de marcas que usam o sistema de fast fashion, já que elas conseguem cobrar um preço menor por seus produtos. Então, será que podemos culpar essas pessoas por praticarem esse tipo de consumo?

O que não entra no discurso da luta contra o fast fashion é que os maiores responsáveis pelos danos ambientais que ele causa não são os consumidores. Ações individuais, como parar de comprar de marcas que fazem uso desse sistema, não vão salvar o planeta da crise climática. Os únicos que podem mudar alguma coisa dentro desse contexto são os integrantes das classes mais altas que estão por trás das escolhas feitas por essas marcas. 

Não acreditar nas ações individuais como solução para problemas como a crise climática não é ter pouca fé ou ser niilista, que seria ter um olhar pessimista em relação à vida e uma descrença nos valores e princípios criados socialmente. Na realidade, não acreditar nesse boicote ao fast fashion é apenas ter consciência de classe e saber que o poder está todo nas mãos dos grandes empresários que comandam a máquina capitalista.

*Termos usados no mundo da moda. Em português significam, respectivamente, moda rápida e moda lenta.

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