Na Maré, geração cidadã de dados no enfrentamento à crise do Covid-19
O Brasil vive um apagão de dados em relação ao novo coronavírus e nas periferias esse problema se acentua. Na ausência do estado, ativistas estão reagindo para produzir de forma independente informações para defender e conscientizar suas próprias comunidades.
Por João Henrique Alves Cerqueira
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Muito possivelmente o Brasil vai ser conhecido como um dos piores (se não o pior) países a lidar com a pandemia do novo coronavírus. Entre as recomendações dadas aos países pela Organização Mundial da Saúde desde que o estado de pandemia foi decretado em janeiro desse ano, Estados que adotaram tanto medidas de ampla testagem quanto de isolamento social radical chegaram nos melhores resultados na mitigação dos impactos dessa crise.
Nesses dois pontos, o nosso país é um dos que menos realizou testes entre o ranking global e, como lembrado pelo presidente da república diariamente, possui uma política federal contrária ao isolamento social.
A ineficiência em testar os casos suspeitos aponta não só para incapacidade técnica de gestão dessa crise, mas também mostra como existe uma lacuna imensa nos dados necessários para ajudar na tomada de decisões dos gestores públicos que sejam baseada na realidade. Para entender melhor, podemos fazer um paralelo: criar políticas públicas para reagir à uma crise sem possuir os dados para compreendê-la é como tentar medicar um paciente sem ter a ideia do que o está deixando doente… é muito provável que o remédio usado seja inadequado, dosado na quantidade errada e possivelmente faça mais mal do que bem.
Quando levamos em consideração o histórico colonial e escravocrata do nosso país, mesmo antes da pandemia esse apagão de dados já era identificado em contextos periféricos e mais uma vez escancara as nossas desigualdades. Nesse cenário, informações oficiais e públicas sobre acesso de periferias à saneamento básico, moradia e saúde quando existem apresentam falhas, além de não serem associados à outras bases de dados que poderiam ajudar na compreensão da realidade.
Essa associação entre bases de dados é importante para entender, por exemplo, se o número de mortes por Covid-19 em uma comunidade está acontecendo na mesma intensidade em relação à situação socioeconômica das pessoas. Ou seja, se o mesmo vírus mata mais pobres que ricos e mais brancos que pretos.
Iniciativas cidadãs mapeiam territórios periféricos
Como uma resposta à ineficiência do Estado para produzir dados sobre os impactos da Covid-19 nas comunidades brasileiras, organizações, movimentos, coletivos e ativistas independentes juntam a necessidade de se organizar e de reagir com as tecnologias e ferramentas disponíveis para produzir de forma cidadã as informações necessárias, compartilhando entre si, conscientizando moradores e dando suporte até mesmo ao próprio poder público para que entenda as realidades locais durante a pandemia.
Para Gilberto Vieira, Co-fundador do Data Labe, um laboratório de dados e narrativas sobre a favela carioca da Maré, o Brasil vai muito mal:
A disponibilidade de dados sobre a pandemia é muito ruim de modo geral. Estamos muito atrás de países que conseguiram fazer mais testes e isso é fundamental para entender o quanto de fato a população está contaminada e nisso Brasil está indo muito mal. Quando analisamos em um contexto de territórios populares e favelas isso piora em um nível absurdo.
Gilberto ressalta que dados sobre o atendimento público à saúde e de saneamento básico são essenciais para controlar a pandemia e entender suas causas, sendo importantíssimo produzir e tornar públicos esses dados por parte do governo.
Ainda que de forma injusta, já que deveria ser papel do Estado, diversas organizações ecoletivos de periferias estão produzindo informações seguras e reais sobre seus próprios territórios, como uma saída para garantir a conquista de direitos durante a pandemia. Gilberto aponta:
O apagão de dados é um projeto de poder relacionado à quantidade de direitos que as periferias acessam e o impacto disso é a falta de políticas públicas de qualidade pros territórios populares e favelas. Você não tem como disputar de igual pra igual política pública como em outras áreas da cidade sem dados relevantes e com força de realidade. Se a gente soubesse, por exemplo, quantas pessoas de fato não tem acesso à água na comunidade a gente talvez tivesse avançado na solução desse problema antes e a pandemia não estaria sendo tão grave nesses espaços.
Setores da sociedade estão se organizando para mapear a realidade, conscientizar edefender seus territórios em um período onde diversas crises estão sobrepostas. O exemplo dos coletivos da Maré em produzir informações de forma cidadã é um entre vários que ilustram a necessidade de compreender melhor o potencial do uso de dados para alcançar a garantia de direitos, ainda mais durante uma pandemia que afeta com maior intensidade os segmentos mais vulneráveis da sociedade.

Apoiar da forma como for possível os projetos que estão fazendo esse trabalho é essencial e o que podemos fazer para garantir que eles continuem atuando. Já o Estado brasileiro poderia aprender muito com esses movimentos e um ótimo primeiro passo seria começar a levar a ciência e os fatos em consideração.
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