Mostra de Curtas da Quebrada: narrativas de potência e dificuldades enfrentadas nas periferias
Mostra na PerifaCon 2023 contou em sua programação com exibição de curta-metragens independentes produzidos por jovens periféricos
Por Camila Alves
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No último domingo (30), ocorreu a 3ª edição da PerifaCon: A Convenção Nerd das Favelas, em Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo. O evento contou com diversos painéis abordando temas como tecnologia, novidades do universo nerd e representatividade negra, além de espaços para editoras, jogos e artistas independentes. No espaço ‘Cinema’, rolou a Mostra de Curtas da Quebrada, em parceria com o Circuito SPcine, com a exibição de curtas-metragens produzidos por jovens periféricos de forma independente.
A primeira sessão, às 16h, apresentou 4 curtas-metragens: “Pedra Fundamental”, “Queda”, “Perifaquadro” e “A trilha sonora de um bairro”, cada um abordando um tema diferente, mas com um mesmo objetivo: mostrar a realidade periférica e com histórias sobre como os moradores se desdobram para enfrentar as dificuldades que aparecem no caminho.
Pedra Fundamental
No curta, o historiador Marcio Reis apresenta a história da formação da Cidade Tiradentes para o público em um passeio pelos principais locais do bairro. Em formato de vídeo de YouTube, o morador narra todas as modificações que tiveram desde o ano de fundação do bairro, 1984, até os dias atuais.
Um dos pontos que ele ressalta é como os moradores ficaram um ano vivendo apenas com água encanada e eletricidade, tendo dificuldades até mesmo para se locomover, pois, para conseguir pegar um ônibus, eles precisavam andar mais de 2 km. Apenas em 1985 que começaram a chegar as infraestruturas necessárias para a vivência dos moradores.
Essa rotina desgastante fez com que muitas pessoas se mudassem do bairro, levando consigo reclamações sobre Cidade Tiradentes “não ter nada”. Hoje, esses preconceitos sobre o bairro continuam enraizados para quem é de fora, mas, quem é morador ou já foi lá sabe que é totalmente o contrário: o bairro, agora estruturado, apresenta muita potência – um exemplo disso é a capacidade de sediar uma edição da PerifaCon em seu território.
O título do curta-metragem remete à uma ideia dos governantes de colocar uma pedra no lugar onde eles pretendem realizar alguma obra. Em Cidade Tiradentes, essa pedra foi colocada com a placa contendo a certidão de nascimento do bairro, mas, por motivos desconhecidos, a placa foi tirada e nunca encontrada – como se quisessem apagar a história do lugar.
Queda
O curta-metragem se passa em uma sessão de terapia, na qual a personagem principal desabafa sobre o dia a dia da vivência na quebrada. A narrativa visual do curta é habitada em diversos locais da periferia, apresentando metáforas de como a personagem, em seu subconsciente, se sente referente à luta diária dela para não desistir e continuar produzindo a sua arte.
Em um momento de reflexão mais profundo, a paciente mostra todo o seu esgotamento de tentar lutar e questiona sobre a sua vivência: De quantas ferramentas eu vou precisar para subir um degrau, enquanto alguns já nascem no topo?
Interessante ressaltar que em nenhum momento ela cita o nome do bairro onde mora, causando ao espectador um sentimento de proximidade à narrativa, pois ouvir sobre o que ela passa, sobre como ela se sente dentro da sociedade, vivendo em uma periferia, nos faz pensar em nossos próprios sentimentos em relação às situações que passamos e enfrentamos para chegar onde estamos.
Perifaquadro
Seguindo a programação, o terceiro curta-metragem apresentado conta o dia a dia dos quadrinistas periféricos, entrevistando Rodrigo Cândido (@candido.art), Israel Neto (@kitembo_literatura), Lucimara Penaforte (@penaforte_tattoos) e Thiago Rezende (@willrez).
Um dos assuntos abordados foram as dificuldades que eles identificam nesse meio de trabalho e, entre as principais dificuldades que eles enfrentam até hoje estão a falta de divulgação por parte da mídia, falta de oficinas sobre o assunto nos bairros periféricos, falta de equipamentos necessários para a criação da sua arte e, acredito como o principal fator, a falta de representatividade negra no meio dos quadrinistas. Um dos entrevistados ainda completou que, para criar as ilustrações, primeiro é preciso consumir – e o consumo de HQ no Brasil é muito caro.
Além dos quadrinistas, também foram entrevistados Edson Rossatto, criador do HQ em Pauta – evento nerd (e gratuito!) em São Paulo – e Andreza Delgado, integrante da equipe de produção da PerifaCon. Ambos dissertaram sobre a importância de criar eventos que possam fortalecer os artistas negros e periféricos, além de espalhar a cultura nerd pelos territórios, democratizando ainda mais esse tipo de consumo.
A trilha sonora de um bairro
O último curta-metragem exibido gira em torno do grupo de rap J.A.C. e como eles usam a música para se comunicar com e sobre a periferia. O curta-metragem se inspirou na principal música deles, CiC (Cidade Industrial de Curitiba), para a construção do roteiro e para mostrar tudo o que os moradores passam. Em um dos momentos, um dos integrantes do grupo afirma que “a música nasce através da violência, do tráfico e da falta de oportunidades”.
Ainda falando sobre as reflexões trazidas pelo trio de rappers, eles apontam como a música da quebrada, aquela que fala sobre o que acontece lá dentro e todas as dificuldades que eles passam, nunca se torna ultrapassada, mas sim atemporal, se tornando um hino para os moradores do bairro, pois como não há melhorias significativas dentro das periferias, independente do momento em que a pessoa ouvir a música, irá identificar todas as denúncias com o que está em volta. No próprio curta eles falam sobre a música CiC, lançada em 2001, mas que ainda conversa com a realidade do bairro de Curitiba dos tempos atuais.
Para além do que acontece dentro do bairro Cidade Industrial, a música lançada pelo grupo J.A.C tem a capacidade de se conectar com a realidade de outras periferias – dentro e fora de Curitiba -, pois a marginalização e o descaso em cima dos moradores desses bairros é evidente, independente do local onde estão localizados. As lutas diárias que eles enfrentam são parecidas e eles estão muito longe de desistir, justamente indo na contramão do que se espera deles.
O impacto na vida dos moradores da periferia
Os curtas-metragens foram produzidos por diferentes pessoas de diferentes territórios, mas o impacto que eles tiveram em cada um que assistiu foi o mesmo: o sentimento de conexão e reconhecimento.
Isso porque, ao assistir, percebemos que todos fazem uma denuncia sobre como a periferia é vista pelo lado de fora e como eles precisaram lutar em dobro para conquistar espaços que foram preenchidos por pessoas privilegiadas. Apesar da resistência de continuar no território e defender aquele espaço que faz parte da sua vivência, os curtas trouxeram também a reflexão sobre o direito do cansaço de estar sempre batendo na mesma tecla, como se precisássemos estar sempre lembrando a sociedade sobre a nossa existência e necessidade de visibilidade nos meios.
Assim como outras periferias, a Cidade Tiradentes vem carregando uma visão enraizada de viver à margem da sociedade, sem cultura ou arte. Mas, o primeiro curta apresentado e outros projetos que o Centro de Formação Cultural oferece mostram o contrário: aquele território tem muita coisa para nos mostrar.
As narrativas contadas se conectam diretamente com Ana Clara e a sua vivência como moradora da Cidade Tiradentes. Além de aproveitar a sua primeira vez na PerifaCon, Ana foi prestigiar o trabalho da sua amiga, Lara Ribeiro, que teve a oportunidade de expor a sua arte para todos os visitantes do evento. “É gratificante de ver, porque ela tem um sonho e batalha todos os dias, com fé ela vai conseguindo cada vez mais conquistar isso. O reconhecimento de ver ela lá, de as pessoas reconhecerem a arte dela é incrível.”, conta.
A Mostra de Curtas da Quebrada e toda a programação que a PerifaCon preparou para o público ressalta a importância da representatividade negra não só nesses eventos, de maneira isolada, mas em todas as oportunidades que surgirem. A quantidade de visitantes presentes no evento mostrou que a periferia quer e consome esse tipo de entretenimento, então, por que não investir nisso?
A cultura faz parte de quem somos e, por mais que as produções estrangeiras continuem ocupando espaços dentro do nosso consumo, está na hora de abrir mais um espaço – e um espaço grande – para as produções nacionais e, principalmente, as produções de periferia, pois essas são as que sempre nos trarão mais identificação, causarão mais impacto naquilo que somos, no que vivemos e no que queremos ser, ajudando-nos à construção da nossa identidade cultural.
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