Do legislativo às escolas, a luta pelas crianças indígenas ganha força
|Por: Taís Ilheu, da Jornalismo Jr. | Imagem: Aua Guarani | (Atualizado 23/mai 15h07)
Não há dúvidas de que o Estatuto da Criança e do Adolescente, que completa 27 anos em julho, representou grande avanço na asseguração dos direitos desta parcela da sociedade, que até então era negligenciada, ainda que fosse a mais frágil diante de inúmeros problemas sociais.
Essa mudança, no entanto, não contemplou por completo todas as crianças e adolescentes brasileiros, e deixou pouco representados justamente aqueles que convivem com as mais baixas expectativas de vida, com o difícil acesso às políticas públicas e com um preconceito tão antigo quanto o próprio Brasil: a população indígena.
De acordo com o último censo do IBGE, o Brasil tem hoje 305 etnias indígenas que fazem uso de cerca de 274 línguas. É uma imensa riqueza, que representa para o Estado uma dificuldade proporcional em grandeza no que se refere à distribuição de terras e formulação de políticas representativas.
São muitos os fatores que contribuíram para que problemas relacionados à ameaça da auto-preservação cultural e precárias condições de vida se estabelecessem entre as mais diversas etnias indígenas, entre eles os anos de extermínio e violência contra esses povos. Um outro fator determinante foi a inconsequente demarcação de terras que se iniciou por volta de 1980.
Na época, populações inteiras foram retiradas de suas terras originárias e confinadas em espaços insuficientes e que não atendiam suas demandas socioculturais relacionadas ao modo de vida tradicional, em contato equilibrado com a natureza. O extremo contrário também foi comum, e muitas vezes eram demarcadas terras isoladas e que impediam qualquer assistência governamental relacionada à saúde, educação e outros serviços públicos.
A dificuldade de manter o modo de vida tradicional e os hábitos culturais por meio da juventude é um medo constante que ronda as gerações mais antigas. “Os Guarani e Kaiowá estão o tempo todo falando dessas condições funestas para as novas gerações. Eles não veem condições dessa juventude ter uma expectativa de vida como Guarani e Kaiowá, como indígena de fato, sem a recuperação desse modo de vida tradicional.”, afirma Spensy Pimentel, doutor em Antropologia Social pela USP e pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios.
O antropólogo enfatiza, no entanto, que a manutenção do modo de vida tradicional não significa se isolar em meio a florestas, mas sim contar com o apoio do Estado, suficiente para que eles possam partilhar de um ambiente saudável, como já acontece em algumas poucas terras demarcadas.
É fato, no entanto, que a discussão vai muito além, e diversos interesses políticos e econômicos referentes à distribuição de terras continuam, em alguma medida, orientando a ação governamental.
A universalização da figura da criança e do adolescente
Apesar do ECA se propor a atender as demandas e assegurar os direitos de toda e qualquer criança e adolescente, independente de sua etnia, sua universalização por vezes é falha. É aquela velha história de que igualdade nem sempre significa justiça.
Isso acontece porque as crianças e adolescentes indígenas não partem do mesmo ponto que as crianças não indígenas. Além dos anos de violência contra suas etnias, elas carregam ainda uma bagagem cultural com diversas particularidades que não se observa na vivência do restante.
Por conta disso, as necessidades e proteção de crianças e adolescentes indígenas não podem ser avaliadas a partir de uma cultura ocidentalizada, que traz suas próprias concepções do que seria ou não adequado para essa faixa etária – estabelecida pelo Estatuto, incluindo crianças até doze anos e adolescentes entre doze e dezoito anos.
As diferenças já começam por essa própria concepção da infância. Diferente dos instrumentos estatais, que estabelecem uma divisão etária, muitas culturas indígenas a fazem pela demarcação de fases. Nas culturas Guarani e Kaiowá, a criança entra numa nova fase da infância a partir de mudanças físicas e biológicas.
“As meninas depois que menstruam pela primeira vez, quem deve acompanhar são as pessoas idosas e as mulheres, enquanto os meninos a partir da mudança de voz, são os homens que deveriam passar a ensinar as atividades masculinas”, explica Tonico Benites, doutor em antropologia pela UFRJ e hoje uma das maiores lideranças Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul.
A incompreensão dessas particularidades pode resultar na má assistência das crianças e adolescentes indígenas. Para os Guarani e Kaiowá, isso vem, em grande parte, da dificuldade em assimilar a maneira como as funções são desempenhadas dentro das famílias e também a maneira como a hierarquização se constitui nestes casos.
Ao mesmo tempo em que as medidas protetivas estabelecidas pelo Estado condenam, por exemplo, deixar crianças sob os cuidados de outras crianças, – o que é tido como normal em muitas famílias indígenas -, as ferramentas estatais estabelecem que o indivíduo com mais de 18 anos tem autonomia e responde por seus atos, enquanto em algumas culturas, como a Guarani e Kaiowá, estes ainda estão sob tutela e respondem à autoridade como os avôs.
“Na cultura indígena, isso é marcado quando você tem neto. Depois que você tem neto significa que você já adquiriu responsabilidade máxima, suprema. Você passa a ter autoridade”, relata Tonico. À primeira vista, a lógica pode parecer um tanto contraditória, mas durante todas as fases da infância as crianças Guarani e Kaiowá estão sob vigilância dos mais velhos.
A visão homogeneizante – e por vezes combativa – do Estado e de grande parte da população brasileira não-indígena, não só dificulta a implementação de medidas públicas adequadas para o desenvolvimento das crianças, como pode também as submeter e condenar à condições de vida muitas vezes miseráveis e de extrema exposição à violência.
O cerne de todas as formas de discriminação, evidentemente, é o preconceito contra a própria cultura indígena, o que representa um grave risco ao direito de autopreservação de cultura dos povos, garantido pela própria Constituição.
O despreparo do Estado na efetivação dos direitos de crianças e adolescentes indígenas
O despreparo de alguns agentes públicos designados para mediar conflitos indígenas é também um reflexo do quão pouco essas culturas são conhecidas e valorizadas. Afinal, as próprias concepções de conflitos são diferentes e o que muitas vezes é tido como problemático pela lógica do Estado, faz sentido dentro da organização de determinadas etnias.
Em seu artigo intitulado Múltiplas vitimizações: crianças indígenas Kaiowá em abrigos urbanos no Mato Grosso do Sul, a antropóloga Silvana Jesus do Nascimento evidencia, a partir de relatos colhidos em abrigos urbanos, a maneira como a população indígena é incompreendida tanto na infância como em sua fase adulta.
Silvana defende que enquanto as crianças sofrem uma dupla vitimização – primeiro, por serem crianças, e segundo por serem indígenas -, os adultos são encarados como criminosos.
No caso da institucionalização de crianças indígenas – que é a retirada da família indígena e inserção da criança no abrigo – o despreparo acompanha também todo o restante do processo. As crianças colocadas em abrigos passam a conviver com uma outra lógica, na qual novos hábitos passam a ser inseridos no seu cotidiano. Isso pode fazer com que seus antigos costumes sejam desvalorizados em favor dos novos.
Já em casos de adoção de crianças e adolescentes indígenas, o ECA declara que devem ser respeitadas a identidade social e cultural, os costumes e tradições, bem como as instituições de cada povo. Além disso, o estatuto prevê também que crianças e adolescentes indígenas sejam adotados preferencialmente por parentes próximos.
A antropóloga relata ainda que os motivos pelos quais as crianças eram retiradas das famílias indígenas muitas vezes decorria da dificuldade dos agentes responsáveis em perceber as expressões políticas desses povos.
“Partem [os agentes responsáveis] das definições ocidentais a respeito do que seja violência, negligência ou abandono e, assim, correm o risco de cometerem equívocos ao encaixar certos comportamentos Kaiowá nessas definições”, afirma.
No entanto, o desconhecimento não é o único fator que influencia nesses casos. Há ainda o preconceito, alimentado em especial pela população regional que acompanha de perto a reivindicação dos povos indígenas por terras e que são fortemente influenciados por estereótipos reproduzidos pela mídia.
A falta de investimento do Estado na preparação para lidar com as diferenças culturais, atinge não só o âmbito da criança e do adolescente, mas diversos outros. Spensy afirma que muitos “mediadores de conflitos não-indígenas” agem da mesma maneira, avaliando os problemas destes povos por uma perspectiva social completamente desconexa com a realidade em que estão inseridos.
Dentro das escolas

Um dos principais palcos na luta pela asseguração dos direitos da criança indígena é dentro da sala da aula. Muitas vezes, as diretrizes escolares estabelecidas pelo Estado e até mesmo alguns preceitos do ECA entraram em choque com especificidades culturais de alguns povos.
Em matéria publicada na Inesc, Cléber Buzzatto, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário – CIMI, cita como exemplo o caso dos povos Caingangues, que costumam levar as crianças em viagens para comercializar artesanatos. O que é uma prática cultural daquele povo, acabava sendo interpretado pelo ECA como afastamento de crianças da escola.
No entanto, na contramão deste despreparo ainda muito presente em algumas regiões, diversas mudanças vêm sendo adotadas desde a Constituição de 1988, no sentido de promover uma educação indígena que permita à criança e ao adolescente crescer e aprender dentro de suas próprias práticas culturais.
A mais importante menção à educação indígena na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional diz que é de responsabilidade do Estado oferecer uma educação escolar bilíngue e que fortaleça as práticas culturais de cada povo a fim de preservá-las, além de dar acesso aos conhecimentos técnico científicos comuns a todo o restante do Brasil. O responsável pela asseguração destas medidas é o próprio Ministério da Educação, que tem trabalhado principalmente na criação de projetos para este fim.
Um desses projetos é o Saberes Indígenas na Escola, criado pelo MEC em 2013 com o intuito de suprir as especificidades da educação indígena no que diz respeito à formação continuada de professores, em função da Alfabetização na Idade Certa – compromisso assumido pelo governo federal de assegurar que todas as crianças estejam alfabetizadas até os 8 anos de idade.
A ação foi criada em nível nacional, mas é preciso adesão dos estados. Anari Nantes é uma das coordenadoras do projeto no município de Caarapó, no Mato Grosso do Sul, e explica que lá ele conta com o suporte das instituições de ensino superior. Além dos Guarani e Kaiowá, os Terenas também fazem parte do projeto e contam com a coordenação da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
Apesar da base comum curricular também ser válida para as escolas indígenas, há toda a parte diversificada de formação. O projeto garante a alfabetização na língua materna e no português, por exemplo. No ensino da matemática, utiliza-se a metodologia da etnomatemática, que leva em consideração as vivências de cada etnia.
O projeto foi pensado de modo a ser adaptado à grande diversidade de etnias indígenas espalhadas pelo território nacional, e para isso todas as equipes contam com coordenadores de estudo da própria aldeia. Depois do encontro de formação, que ocorre uma vez por mês, este coordenador fica responsável por voltar à escola e repassar este conhecimento para os professores, adaptando à realidade e à cultura de sua respectiva aldeia.
Apenas no município de Caarapó (MS) são 50 professores cadastrados, além dos coordenadores de estudo e dos pesquisadores, que estão também na empreitada de produzir material didático nas línguas maternas destes povos. Anari enfatizou também que o calendário e planejamento escolar é pensado de forma a respeitar as celebrações e comemorações de cada etnia. “É considerado aula [a programação de celebrações] porque eles tão trabalhando os

saberes culturais deles dentro das festividades”.
A educação infantil, por lei, também não é obrigatória para as crianças indígenas, que podem entrar na escola a partir do primeiro ano do ensino fundamental. “A criança que vai direto para a primeira série é mais difícil de alfabetizar porque ainda não está neste processo, mas apesar de o professor ter mais trabalho, ela não vai deixar de aprender. Aqueles que estudam desde a pré escola estão mais adiantados e estimulam os outros”, aponta Anari.
Uma outra maneira de resistência e luta pelo direito de autopreservação que tem rendido bons resultados, são as associações culturais organizadas pelos próprios indígenas. Uma delas é a Ascuri, que tem como principal objetivo a produção audiovisual sobre o contexto indígena, lutando contra a reprodução da imagem do índio carregada de preconceito que é veiculada pela mídia hegemônica.
A associação permite que crianças e adolescentes indígenas tenham contato com tecnologias que muitas vezes não chegam por via do Estado. Para Eliel Benites, um dos fundadores, esta é também uma forma das novas gerações indígenas contribuírem para a sociedade ao mesmo tempo em que vivenciam sua cultura e trocam experiências. A ideia da Ascuri é também não assumir uma cultura específica, mas sim promover o fortalecimento da luta indígena como um todo.