Imagens e vozes da Baixada Fluminense

Uma entrevista com Bella Tavares, conteúdo extra do artigo “A representação da Baixada Fluminense no audiovisual“, que integra a Revista Jovens Investigadores em Juventude e Saúde, da Agenda Jovem Fiocruz.

Por Douglas Maia Colarés*

Isabella Oliveira Tavares de Sena, ou simplesmente Bella Tavares, tem 27 anos e é professora de história e artes visuais, pesquisadora, curadora, produtora audiovisual, cineclubista, designer e se aventura ainda na literatura, pintura e fotografia quando pode. Ufa! Com um repertório desses, não poderia deixar de ser uma mulher ativa e ativista. Cria de Nova Iguaçu, ela é a prova que a Baixada resiste e não desiste. Atualmente faz parte do cineclube Xuxu Comxis, coletivo encabeçado por mulheres da região.  Da janela de casa e das lentes da câmera, vive de contar histórias para o mundo!

Isa e Bella: tantas dentro de uma. Ou uma dentro de tantas. Nessa entrevista sobre arte, identidade e potentes produções audiovisuais buscamos desvendar algumas delas.

Bella Tavares sob o olhar do artista Remy Branco / reprodução

Douglas: Filmes, minisséries e telenovelas como O Homem da Capa Preta (1966), Crueldade Mortal (1976),”Bandidos da Falange (1983) e Chamas da Vida (2008) retratam a Baixada Fluminense a partir de um prisma de desigualdade e violência (algo que até alguns títulos dessas produções reforçam). Como você enxerga a forma que enxergam você e seu território? 

Bella: Numa aula sobre História da BXD, dada pela professora Stella Pieve, discutimos acerca do imaginário referente à Baixada Fluminense, nos encontros cada estudante pode colocar o seu olhar em relação ao território. Ela me disse que escolhi expressar a Baixada pelo afeto em relação à memória de minha família e os movimentos culturais que me abraçaram e sigo abraçando, dizendo que “com isso, você tem menos necessidade de negar a falta e a violência, mas se empolga mais em apresentar os coletivos, os movimentos culturais, etc. Muito legal!”

A expressão artística e o fortalecimento da memória é algo muito presente em meu ser. Quando vejo expressões em relação à desigualdade e violência não nego, pois sei e convivo com muitos problemas em relação à violência e as questões de falta de investimentos na esfera pública. Mas acho importante saber estar atenta a quem se dirige e como se dirige ao território que habito, pois somos muito mais do que desigualdade e violência; acredito que a arte expressa esses atravessamentos, a arte produzida por quem vive a Bxd todos os dias, é fundamental para mim estar atenta as narrativas, pois reconheço a necessidade da construção de narrativas contra hegemônicas, investimento na pesquisa em relação a memória, patrimônio e cultura da Bxd. A arte é política, nesse sentido!

Exposição Bxd Filma por elas, 2018.
Manifesto Baixada Filma. Disponível em: http://baixadafilma.com.br/

Produções ambientadas na Baixada de forma recorrente tematizam em imagens o calçadão e principalmente a estação de trem de Nova Iguaçu. Qual a importância da estação (construída em 1858, na época que a cidade era conhecida por seus laranjais) e outros espaços para a identidade cultural do município?

Bella: A estação é marcante por sua construção histórica no século XIX e para além, eu vejo como destaque a linha do trem que marca as nossas viagens, nossos corpos, territórios e histórias. Sem contar que é a linha e o trem que nos leva a outros espaços. Nos filmes, a narrativa vai de encontro a ideia que sempre vamos, mas é importante demais estar aqui, ocupar, quando enfatizamos as estações em relação aos bairros ou as cidades da Baixada na minha percepção é em relação a essa afirmação: estamos aqui! Produzimos muito como mostra o Manifesto Baixada Filma, sonhamos, realizamos, esse é o nosso olhar para o nosso lugar, essencial destacar esses pontos de importância como o calçadão que marca nosso dia a dia, o trem que é nosso meio de acesso a outros lugares e como cada estação carrega pedaços dessas histórias. As praças também são lugares que ocupamos para produções artísticas e culturais. Em Nova Iguaçu temos a Praça dos Direitos Humanos, importante ponto de encontro cineclubista.

Sessão Xuxu Comxis no ramal Japeri, 2012.

A estação também revela um importante fluxo de mobilidade e deslocamento para o restante do Rio de Janeiro. Por isso, por vezes os municípios baixadenses são chamados de “cidades-dormitórios”. Como você analisa esse retrato? E quais espaços e movimentos, na sua opinião, desmentem essa visão, reafirmando a Baixada como um território também de se viver e criar tradições?

Bella: Durante muito tempo se utilizou esse termo, escutei muito! Pode ser que ainda utilizem, mas não me representa e alerto o quanto não devemos nos “limitar” a essa expressão preconceituosa. Nas minhas produções cinematográficas coletivas pelo Xuxu Comxis enfatizamos o quanto esse termo não irá apagar a nossa memória em relação as nossas tradições, criações, movimentos culturais, ocupação territorial e resistências como um todo.  Como profissional da educação acredito na importância dos movimentos artísticos e culturais nos espaços públicos (dentro e fora das escolas) na Baixada Fluminense, pois eles são formações e refletem no cultivar da população, são essenciais.

[…]

Nós tamo aqui

Atravessando a cidade

Desde a nossa infância

Nem vem com esse papo que não temos relevância

Nem vem com esse papo que não temos relevância

Aaaaaa

Mais que resistência

Nós é existência

Bxd bxd

(Adrielle Vieira Tiago TK- Xuxu Comxis)
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aGdkfMTUgpI
Evento Iguacine, 2017.

Você está atravessada por várias identidades: mulher, indígena, moradora de periferia, artista, cineclubista, professora. Como essas vivências atravessam sua existência e quais reflexos disso tudo no seu trabalho? E como a Isabella se divide (ou se múltipla) para conciliar a pesquisa, a arte, a licenciatura? 

Bella: Ser tão. Coração se expande só de pensar. Sou Bella, filha de Dona Severina, neta de Dona Regina e bisneta de Mãe Bitonha. Neta também de Dona Neta (que era parteira e trouxe muitos de nós a vida) e bisneta de Alzira, todas mulheres nordestinas, paraibanas, indígenas e retirantes que viram para Baixada Fluminense em busca da oportunidade também de semear esta terra, com seus saberes, histórias, ideias e muita luta! Viva a memória e tudo que sou graças a elas, sou todas em mim. Sigo aqui em Nova Iguaçu atuando na arte, cultura, educação e tentando entender como meu corpo lida com a realidade que nos cerca nesse espaço. Acredito que seja sobre se multiplicar para criar e gerar soluções dentro de tantos desafios. Permaneço na pesquisa sobre história e gênero no recorte cineclubista na Baixada Fluminense.

No cinema sigo com produções de escrita de novas ideias em relação ao nosso território.  Já finalizamos oficinas de audiovisual e vídeo clipe (BXD Existe) em março pela Aldir Blanc, no município de Nova Iguaçu. Muitas coisinhas seguem se tecendo, estamos no aguardo de resultados, em breve eu falarei mais.

Dentro desse universo de curadoria, venho pesquisando academicamente produção audiovisual, cineclubismo, educação. E o projeto Terra isa iguassu veio para somar, pois sou filha dessa terra e minhas antigas sempre cultivaram a vida e me ensinaram sobre a importância do plantio para permanecermos vivos. Dentro de uma crise sanitária causada pela pandemia resolvemos, através da conexão terra e arte, criar terrários e partilhar para além de nossa família. Empreendemos, acho que é essa a palavra! Além do cultivo a terra, pinto telas, paredes, vasos, pratos com ilustrações que vem do meu coração e pertencimento territorial.

Projeto Terra isa Iguassu, 2020.

Quais são as delícias e dores de difundir arte em tempos que ela vem sendo tão atacada?

Bella: Tem sido muito dolorido, o que me faz não parar de produzir, sabe? Pois é fazer o que gosto, e ainda com dificuldades ter prazer em partilhar com quem anda comigo e acredita nesse tecer coletivo. Mas é difícil demais estar num universo sem perspectiva e ter que criar a partir do que temos! Sabemos que muito nos é negado. Ataques que cutucam a ferida aberta! Mas não podemos desistir! Pois o mínimo anda sendo a sobrevivência. É sobre viver. Penso em todes. Há um trecho de canção que não sai da minha mente.

Apesar de você

Amanhã há de ser 

Outro dia

Inda pago para ver

O jardim florescer

Chico Buarque

Fé.

Ao mesmo tempo que há tentativas de desmonte, diversos coletivos têm produzido conteúdo local, inclusive conquistando prêmios (o caso do curta metragem ‘Viro Artista ou Mato Tentando’, entre outros). Além disso, a pandemia de Covid 19 escancarou a necessidade de consumo de produções de arte e cultura. O que você espera para a cena artística quando tudo isso passar? Você tem algum projeto em andamento? 

Bella: Eu espero mais e mais oportunidades geradas, não há progresso sem acesso. Temos a responsabilidade de permanecer semeando mesmo diante das dificuldades. E que as lideranças políticas respeitem as vidas e valorizem as artes. “Ar te é vida!”

Em relação aos projetos, conclui o ciclo da formação curatorial pela Semana de Cinema Festival com a sessão “Afetos da terra que habito”, e pretendo seguir na curadoria e produção audiovisual dentro do Xuxu Comxis e em outros projetos, além de atuar como educadora pela Escola Popular de Artes, e como Designer pelo Terra Isa Iguassu. Sigamos!

Você se enxerga como jovem e baixadense em produções da grande mídia, como cinema comercial, televisão (como Malhação – Toda Forma de Amar)? 

Bella: A princípio eu diria que não. E pensei por que não? Acredito que a ideia do “não” vem de um lugar de pensar que a nossa construção audiovisual vem de um outro lugar, de um lugar contra hegemônico, um lugar de guerrilha! Mas preciso conhecer melhor as produções da grande mídia, no sentindo de ser algo que não acompanho com olhar mais profundo, Malhação não vejo há alguns anos. Deixo a seguinte pergunta: Será que ao produzir na grande mídia eu teria a liberdade de criação, partindo dos meus referenciais históricos, estéticos e políticos? Seria essencial ocupar esses espaços também junte com quem anda comigo, pois é sobre não andar só e ter a nossa forma de olhar para o espaço.

Para finalizar, a partir de suas sensibilidades, defina o que é ser Moradora da Baixada Fluminense!

Bella: Me vejo como uma flor que nasceu entre os cimentos da cidade e que sente esse desejo de quebrar o concreto e retomar os espaços estando na terra e partilhando a vida com outras plantas e árvores; o concreto aqui são as narrativas preconceituosas, pessimistas e que insistem em nos apagar, mas nós somos existência, resistimos, porque existimos. Somos plantas que não andam só, para nós ser coletivo é algo muito valioso, nossos corações expandem por isso. E a árvore é como o saber dos nossos antigos e antigas. Sinto que os cimentos vão se quebrando e as vidas se multiplicando. Vejo a Bxd assim, crescendo, espero que com raízes fortes sabendo respeitar as vidas.

Gravação Comxis, 2018.

Você pode acompanhar o trabalho de Bella nas redes sociais:

@mariposaquesuena no Instagram

@comxis no Instagram

@terraisaiguassu no Instagram

* Integrante do projeto Jovens Investigadores em Juventude e Saúde, da Agenda Jovem Fiocruz

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