Moradores de Águas Claras enfrentam filas enormes para teste do Covid-19 no estacionamento do Centro Universitário Euroamericano (Unieuro). O ‘drive-thru’ é feito para testagem em massa do novo coronavírus e o atendimento realiza-se por ordem de chegada, dentro do veículo, sendo proibido sair do carro sem orientação da equipe de saúde. Também é recomendado o uso de máscaras faciais e que cada carro tenha, no máximo, quatro pessoas. Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado

Humilhe-se por um teste

Nem o terceiro ano de pandemia nos ensinou alguma coisa sobre testagem acessível?

Por Vitória Rodrigues de Oliveira

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Já era o terceiro dia de sintomas de Covid da minha mãe e o meu primeiro, então chamei um Uber e fomos para o posto de saúde mais próximo da nossa casa. Fomos para o posto da Vila União, em São João de Meriti, Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. Ali começava uma saga que eu também achei que terminaria ali mesmo.

No lugar cheio de pessoas sem máscaras e aglomeradas, fomos fazer o teste ali, ao ar livre. Não demorou menos que 15 minutos, e minha mãe fez o teste rápido: positivo. Logo depois, fui eu, e com um princípio de garganta arranhada e tosse seca fiz o teste. Felizmente, não reagente, mas eu sabia que provavelmente era um falso negativo. 

Não tinha atendimento médico, então a sorte de minha mãe é que ela pôde comparecer a uma clínica que é conveniada por conta da minha avó: se não fosse isso, ninguém teria receitado nada pra ela. Parcelou os medicamentos e veio pra casa. Aquilo era o começo de dias muito longos.

No dia seguinte, na terça, a gente tava pior. Sem forças para cozinhar algo minimamente bom, a gente só comia, de fato, o mínimo. Tivemos febre, dor de cabeça, fiquei confusa, zonza, além da coriza e catarro. Imagine o meu cansaço tendo asma e bronquite?

Meu irmão mais novo veio da casa da minha irmã no mesmo dia em que minha mãe testou positivo porque não podia mais ficar lá, e desde então, não vimos o rosto todo um do outro devido as máscaras, a falta de convivência na janta, no almoço, no café. Um tanto estranho, mas necessário.

Eu segui estudando e fazendo as oficinas e atividades do projeto que integro, a Ini.se.ativa, porque precisava de algo pra encher a cabeça, mesmo que doesse falar. Era muito estranho passar o dia trancada no cubículo que é o meu quarto e nem poder ver minha mãe e meu irmão direito. 

Resolvi ir testar de novo quando as coisas pioraram, porque era impossível eu não estar com Covid, e aí, de novo, veio a terrível ideia de ter que ir pra um posto de saúde diferente do da Vila União, porque talvez não fossem querer me testar lá, então paguei mais caro e parti para a Vila Norma. Cheguei lá e era 13h21. Caos.

Quando cheguei, um idoso foi embora, sua esposa ia atrás, desesperada: ele provavelmente estava com o vírus, passou mal e ninguém o atendeu. A fila dava volta no posto, e as pessoas com quem conversei estavam ali há umas duas horas, mas nada andava, nada acontecia. Fiquei lá por um tempo, mas resolvi ir pra Vila União.

Cheguei e a última da fila, que tinha umas 15 pessoas, me disse que era ali que fazia o teste. Uns 40 minutos eu fiquei, e de minuto em minuto saía da fila pra um canto mais vazio, porque as pessoas estavam fumando, bebendo, algo tão estranho. A Agente Comunitária de Saúde veio perguntar onde estava meu teste, eu disse que queria fazer e ela me revelou que aquela era a fila de pessoas que tinham testado positivo.

Correndo, finalmente fui pro lado correto e cheguei a uma belíssima conclusão de que não dava. Simplesmente não dava. Diferente da segunda-feira, agora o teste era numa sala sem muita ventilação, com a galera usando a máscara incorretamente, e muita, mas muita fila, mesmo com aquele calor. Já não aguentava mais o cansaço e vim pra casa.

Você acha que eu desisti?

Na sexta acordei cedo, coloquei minha Constituição na bolsa e lá fui eu com o meu irmão. A fila ia até quase o fim do quarteirão do posto, mas ficamos e ficamos. Duas horas e meia de aglomeração e desorganização. Quando finalmente chegou a nossa vez, nos disseram que não seria possível nos testarmos por faltar três meses para eu completar 18 anos. Expliquei que não tinha mais nenhum outro responsável além da minha mãe, e adiantou? Claro que não. Nem chamada de vídeo com ela aceitaram.

Entrei em desespero, liguei pra dona Regina e ela teve de ir lá, mesmo doente (pra você ver o nível da coisa). Quando finalmente achei que o meu teste ia rolar, o atendente, o mesmo que fez o meu cadastro na segunda, me reconheceu e gritou que eu já tinha feito o teste na segunda. A mesma mulher que não deixou a gente se testar sem a nossa mãe presente berrou comigo, dizendo que era um absurdo eu ir me testar de novo e que ia dar negativo de novo de qualquer jeito. Perguntei porque, então, eu não poderia fazer e eles não deixaram.

Nem a pobre da Constituição eu consegui pegar na mão e apontar o que aprendi na aula de Legislação em Saúde (oi, Gilberto Estrela), travei. Como que era possível eu ter ficado quase três horas naquela fila, repleta de pessoas doentes e não ter conseguido me testar?

Saí chorando e fiquei uns dez minutos ali, com as minhas lágrimas na frente de todo mundo. A vulnerabilidade choca, né? Repetia pra minha mãe que aquilo não era possível, não era. Eu estou me formando na escola como gestora em saúde e me perguntava como era possível um gestor deixar aquilo acontecer. Como tudo aquilo era possível?

Como é possível a testagem em massa não ser uma realidade, como é possível o Painel COVID-19 da Prefeitura não ser atualizado direito, como é possível o último mutirão de testes rápidos de Meriti ter sido em 2020, como é possível ter nos tratado tão mal, como é possível ter um posto de saúde só para atender uns seis bairros de uma cidade que é conhecida como Formigueiro Latinoamericano pela sua alta densidade populacional?

Até a década de 80, segundo a minha avó, tinha um posto de saúde e uma escola descendo a escada de frente da minha rua. Tiraram, e virou um lixão, mas que virou uma ciclovia em que faltam muitas coisas a serem colocadas (lê-se obra eleitoreira). E para nos manter submissos do sistema, nos tiram tudo. Até a nossa fé tentam retirar, mas a minha jamais conseguirão arrancar.

E se você quer saber, não, não consegui fazer teste algum, nem sei se tive Covid ou não. Pelo menos o meu irmão conseguiu e deu negativo. Mas enfim, sigo aqui, quietinha na minha, inconformada com o que houve e com o fato de que assintomáticos não devem se testar, como se não pudessem transmitir Covid. Até então, nada sobre a vacinação das crianças, também.

No domingo já rola a minha primeira viagem de avião da vida, e procurando local de testagem da prefeitura aos sábados ou domingos, nada achei. A solução é recorrer a rede privada, que segue lucrando, mais do que nunca, com uma pandemia que não para de nos violentar.

A Covid-19 não mata apenas no atestado de óbito.

Enquanto isso, o tradicional Carnaval é cancelado, mas as festas privadas com ingressos exorbitantes estão aí. Os filhos da Zona Sul curtem a vida festejando e as famílias das periferias passam a vida os servindo.

Esse texto todo pra falar da minha experiência serve pra dizer que até isso é uma violência. Todo dia a gente é violentado de uma forma diferente, né? Pena que eu não sou herdeira, se não isso não aconteceria. Pena que a gente não tem direitos básicos garantidos, se não isso não aconteceria. Pena que a gente vive nesse sistema econômico, se não isso não aconteceria.

Nem sei como fechar essa minha história que jamais vou esquecer, mas agradeço pela existência do Sistema Único de Saúde, porque sem ele, é barbárie. Algo que também faz toda a diferença é: mantenha as pessoas que você ama por perto, elas sim te cuidam e tão ali pra você. Nesses tempos difíceis, o amor salva e mantém a chama da esperança acesa.


AbraSUS quentinhos,

Vitória.

Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado

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1 Comment

  • Infelizmente a Crise Sanitária está “eleitoreira” em todo mundo! Os Planos de Saúde foram desobrigados a vacinar seus segurados, mas quando eu quis optar em receber a vacina com formulação de soro (coronavac) porque desde os 9 meses de idade vou a médico e as formuladas com vírus (supostamente) atenuados, tem efeitos colaterais como febre alta e neuropatia, que devo evitar pelo meu histórico médico, não obtive resposta ao meu email. E finalizei a mensagem: vindo a precisar de cuidador, o SUS pagaria, aguardo, também, resposta até hoje! Ou seja, é muito simplista, a comunidade médica tratar efeitos colaterais como sendo percentual mínimo porque não serão eles a ter em casa um ente sequelado ou passar pelo luto, por um ente que vier a óbito como muitos pais vivenciaram ou muitos filhos ficaram órfãos! Mas essa realidade poderá ser mudada, o nosso saudoso INAMPS recriado, por jovens que estão sendo lembrados a votar, mas podem ser votados! Era um Sistema que contemplava várias especialidades médicas e serviços odontológicos de primeira, porque naquela época Não havia tanta hierarquia: o SUS trouxe aquela máxima: “muito cacique para pouco indio”! Melhoras a vocês!

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