Expressão artística como forma de transformação social
Esse texto tem por objetivo refletir sobre as potencialidades da arte e do fazer artístico na transformação da sociedade, apoiado por pensadores e filósofos das mais diversas épocas, desde os clássicos como Aristóteles (384 a.c – 322 a.c), até os racionalistas como Espinosa (1632 – 1677), e os pós-modernistas como Nietzsche (1844 – 1900) e Danto (1924 – 2013). A escolha desses filósofos segue uma linha lógica em que um teve influência na estruturação das ideias do outro, ganhando assim uma dimensão complexa na compreensão dos conceitos aqui trazidos.
Por Guilherme Leutwiler
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Potência. Sugiro que essa seja a primeira palavra que se deva pensar quando se fala sobre transformação social.
Mas… Por quê?
Para tentar responder essa questão, temos como ponto de partida a arte e a expressão artística, sendo elas apenas um dos diversos pontos que podem ser compreendidos quando busca-se refletir sobre o tema central deste artigo.
A arte se desenvolveu na evolução biológica do ser humano. Foi no decorrer dos milênios que ocorreram diversas transformações no cérebro e no processamento e discernimento da realidade, o que fez com que fosse aprimorada a cognição e, assim, a concretização das imagens como forma de comunicação.
Sabe-se, por meio disso, que o caminho que a arte percorreu na sociedade foi amplo e diversificado, estabelecendo-se, a priori, como ferramenta mediadora da expressão comunicativa dos seres humanos, sendo desenvolvida mais adiante, ao longo do tempo, como algo conceitual, subjetivo e estético.
No entanto, apesar das diferenças substanciais de uma e outra época, nota-se que tanto como ferramenta quanto como apropriação subjetiva, conceitual e estética, a arte sempre abordou a expressão do ser humano – ou seja, sempre buscou comunicar algo.
Assim, baseado em Arthur Danto, grande filósofo e crítico de arte, é possível entender a arte como um conceito aberto, que não necessita de definição, pois não há possibilidade de englobar tudo que constitui a arte em algo definido, e se assim fizesse, essa ‘teoria geral da arte’ seria facilmente rompida com a chegada de algo que difere da definição e que mesmo assim pode-se denominar arte.
Para que se possa dar seguimento, faz-se necessário percorrer junto à arte e sua potência de transformação, o caminho da filosofia. Ainda em Danto, vê-se evidente que a ideia da arte está imbricada na filosofia desde os primórdios, uma vez que a maioria dos filósofos buscaram compreender o mundo, compreendendo também a arte e suas mais diversas manifestações e expressões na vida em sociedade.
Em primeiro plano, antes mesmo que haja uma concepção sobre o que é arte, pensar a respeito da beleza era um dos objetivos centrais do pensamento antigo grego e o entendimento da natureza como algo belo vem quase de imediato para a época, uma vez que entendiam a natureza como um todo ordenado e, de forma consequente, tudo que é ordenado é belo. Pensamento que ganha seu ápice em Aristóteles.
Para Aristóteles, o conceito de arte pode ser entendido como tudo aquilo que é criação humana, partiremos, então, deste princípio.
A filosofia aristotélica traz para a conversa o conceito de Eudaimonia – potencial pleno de realização de cada um, excelência da ação humana, que possibilita a virtude e a felicidade máxima – para que seja entendido o papel da arte para o ser humano. Essa Eudaimonia pode ser alcançada e atingida pela apreciação ou pela expressão da arte e não só por mera cópia de uma beleza da natureza, como diriam os pensadores antes dele.
É também nesse pensamento aristotélico que surge a ideia de ato e potência, em que o primeiro é algo que existe no mundo e o segundo se dá pelo que este algo pode vir a ser.
Assim, então, pode-se induzir que a arte – toda criação do ser humano, segundo esse pensamento – é processo de potência, pois não seria o que é se não houvesse o vir a ser que se tornou arte, e que, desfrutando desse processo de potência, poderá o ser humano atingir um estado Eudaimônico da existência, em que há felicidade e virtude na plena contemplação da beleza da arte.
Mais adiante na história da filosofia, chegamos em Espinosa.
Aqui, a ideia de potência (ou conatus, para o filósofo) desenvolve-se de uma outra forma: Entende-se a potência de agir do ser inteiramente ligado aos afetos, em que só se pode compreender os afetos como afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída. Ou seja, todos os seres são afetos pelo mundo e esses afetos podem alegrar ou entristecer; quando alegram, a potência do ser é aumenta e, quanto entristecem, ela diminui.
O ser humano, então, segundo Espinosa, tem a necessidade de buscar afetos de alegria para que sua potência seja sempre aumentada. Dessa forma, a arte parece ser um terreno mais que fértil para afetar e ser afetado, uma vez que a arte é expressão e criação humana – como diria Aristóteles – e a expressão humana é fruto dos afetos, já que demonstramos afecções pela arte e nos afetamos quando apreciamos (ou não gostamos) dela.
Portanto, é natural que se chegue à ideia de entender a arte e o fazer artístico como forma de traduzir as afecções do corpo no mundo, e de, por consequência, gerar afetos que possibilitam um aumento na potência do ser – desde que guiados pela consciência do afeto em questão –, abrindo espaço para um ser livre e transformador de sua realidade.
Passados mais alguns séculos, chegamos no ponto alto da potência do indivíduo mediada pela arte: Nietzsche.
Para o filósofo, a arte é definida pela força de motivação do artista, não necessariamente pela criação, não necessariamente pela apreciação, mas pela vontade de potência ativa que move o ser para que seja feito aquilo que se pode chamar de arte.
Logo, a beleza se torna consequência da arte que, por sua vez, torna-se tudo aquilo que se pode demonstrar potência.
É possível, com isso, conceber o conceito de potência para Nietzsche como sendo um estado de fluxo de energia vital em seu ápice de intensidade, onde o ser humano se torna ‘senhor de si’ e tem disposição tal que cria e molda sua realidade, fazendo-se a si mesmo e se transformando em super-homem ou além-do-homem (Ubermensch, nas palavras do filósofo, que para ele se define como o ápice do ser humano, seu maior grau de entendimento de si, do mundo e dos outros).
Assim, para Nietzsche, só com o exercício da arte é possível reorganizar as energias do mundo para que a expressão da potência transforme a realidade. Dessa forma, será belo tudo que transparecer essa potência ativa de criação e todo agir artístico que leva para um estado eufórico de expressão da vida.
Assim, segundo essa lógica, torna-se possível julgar os artistas e aqueles que expressam sua essência e seus sentimentos através de diferentes formas de arte como pessoas de força ativa, cuja vontade de potência e criação é grande e, por isso, estão mais próximas de transformarem a sociedade por meio do exercício de sua potência e intensidade criadora.
A partir disso, tem-se a ideia da importância da potência para criação da arte, do belo e da transformação social a partir de um agir artístico.
Portanto, a arte é a própria a energia vital do artista, uma vez que toda e qualquer manifestação humana é regida pelas pulsões de quem a faz e são essas mesmas pulsões que tem o poder modificador necessário para que se altere e transforme a sociedade.
Ana Mae Barbosa, um dos maiores nomes do Brasil nos campos da arte e da educação, completa esse pensamento ao afirmar em seu livro “Arte-Educação no Brasil” que: “por meio da arte, é possível desenvolver a percepção e a imaginação, apreender a realidade do meio ambiente, desenvolver a capacidade crítica, permitindo ao indivíduo analisar a realidade percebida e desenvolver a criatividade de maneira a mudar a realidade que foi analisada” (2008, p. 18).
A partir dessa reflexão, é possível refletir também acerca do papel da educomunicação – campo que busca a abertura de espaços e de incentivo a expressão comunicativa e de práticas educativas – nesse processo, uma vez que tem por objetivo ampliar as condições de expressão da juventude como forma de engajá-la em seu próprio processo educativo.
Assim, ao pensar a arte no processo educativo, com intencionalidade inter e transdisciplinar, torna-se possível entender sua potência transformadora, uma vez que um ato educativo voltado para a expressão artística pode proporcionar uma compreensão e consciência da realidade, dos afetos e afecções, assim como o aumento da potência de agir, da vontade de criação e, por consequência, da ação de transformação social.
Por isso, podemos entender a arte como um conjunto de relações que tem o poder da inquietação da sociedade, evidenciado ao longo da história, em que os artistas foram ocupando diferentes lugares e se definindo com uma pluralidade de práticas e técnicas que trouxeram até nós toda bagagem que se tem hoje para pensar a respeito da expressão e do sentimento.
Dessa forma, parece impossível, ou mesmo pouco provável, que haja transformação sem haver expressão de uma vontade da potência, ou seja, se há barreiras para a expressão e para o exercício da vontade e da energia de criação humana, haverá transformação e haverá transformação por meio da arte.
Independente de sua forma, a arte segue modificando o pensamento e o olhar do ser humano, a potência transforma a arte e a arte afeta outros, potencializando-se com ela e criando um ciclo de transformações. Por conclusão, então, vemos que a arte nada mais é que puro ímpeto de criação e forma de transformação pela potência, seja qual for. É a intervenção do ser humano na realidade a partir da abstração da mesma e o entendimento de que sua expressão é parte integrante da transformação social.
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