Da Invisibilidade à Representação: Transformações na Mídia para Pessoas Pobres Queer

Há 16 anos, Amber Hollibaugh escreveu sobre a ausência de pessoas queer pobres na mídia, conectando isso à sua experiência no trabalho social. A predominância de imagens de homens brancos privilegiados distorceu a compreensão das identidades queer, impactando narrativas equivocadas e decisões políticas. Embora tenha havido avanços na representação queer em programas, como nas novelas da Rede Globo e nas redes sociais, a falta de representação queer e trans pobres persiste. A internet permitiu que alguns discutissem suas vivências, mas a invisibilidade ainda prevalece na mídia convencional. Ativistas usam hashtags e campanhas para pressionar por mais representação, mas desafios interseccionais de raça, classe e gênero persistem. A representatividade é crucial não apenas para refletir indivíduos, mas também para desafiar estereótipos e promover compreensão inclusiva da diversidade humana, exigindo abordagens interseccionais e o contínuo esforço de construir uma sociedade mais igualitária.

Por Vitor Ranieri

Há 16 anos, não havia pessoas pobres queer na mídia — Algo mudou?

Em 2001, Amber Hollibaugh publicou um ensaio no The Village Voice intitulado “Queers Without Money: They Are Everywhere, But We Refuse to See Them“. (Queers pobres: Estão em todo o lado, mas nos recusamos ver – em tradução livre). Hollibaugh conectou suas experiências no trabalho social à falta de pessoas queer pobres na televisão e em outros meios de comunicação. 

Em 1990, as imagens dominantes de pessoas queer eram as de homens brancos privilegiados, o que dava – e em alguns casos, até os dias de hoje ainda dão – as alavancas para conservadores e a mídia reverberarem narrativas equivocadas sobre pessoas queer. A ideia de que as pessoas queers eram todas ricas e brancas não apenas fez com que organizações sem fins lucrativos que ofereciam recursos que salvam vidas ignorassem clientes queer e trans que não se encaixavam na narrativa certa nos EUA, mas também afetou as decisões políticas de algumas nações.

Ainda neste cenário, se você acompanha as novelas atuais da Rede Globo, provavelmente já viu a trama entre os personagens Ramiro e Kelvin, que vêm sendo aceitos pelo público, inclusive LGBTs que adoram a relação entre os dois. A interação teve um aspecto cômico, pois Kelvin é gay e afeminado, e desde o começo flerta com Ramiro, um homem bruto e fechado. Como um cara que nasceu numa pequena cidade no litoral sul de São Paulo, garanto que a verossimilhança com a realidade impressiona. Uma das cenas da novela mostra uma fala em que Ramiro afirma que só aceita pessoas LGBTQIA + se não forem seus filhos. O vínculo existente entre os personagens reforça a vivência de muitos outros homens LGBTs, o tropo do homem másculo e supostamente hétero que se interessa pelo gay afeminado é muito comum fora das telas e nas novelas, mas a intenção essencialmente da escolha de retratar estes personagens é meramente com a intenção de divertir o público. Isso foi visto em Morde e Assopra, entre Áureo e Josué, e em Fina Estampa, por Crô e Baltazar, entre tantas outras telenovelas que abordam a mesma narrativa. A questão aqui não é sobre o reflexo que as novelas possuem na vida real, e sua retratação de vivências do cotidiano, o ponto aqui é como as mesmas narrativas reforçam preconceitos, muito mais do que reflexão e dialética.

Um ensaio mais recente em Everyday Feminism sugere que a mídia efetivamente falha quando se trata desse tipo de representação. Em 2013, o site publicou um artigo de Shannon Ridgway intitulado “4 Problemas com a Forma como a Mídia Retrata as Pessoas Pobres“, com a questão número um sendo a invisibilidade. Ridgway usa reality shows como a franquia Real Housewives como um exemplo de como os espectadores recorrem à TV por escapismo, mas observa que

 “Precisamos infundir um pouco de não-ficção com nossa ficção para nos mantermos firmes. Precisamos ver que existem pessoas que lutam e que merecem ter atenção às suas lutas.” diz a pesquisadora. 

Desse modo, o ensaio traz à tona a invisibilidade de pessoas que encontram-se à margem.

Segundo Merskin, 2011, no  que  se  refere  à  mídia  tradicional  como  instituição,  é  necessário ter em mente o potencial de sua estrutura na normatização cotidiana de valores  sociais.  Entendida  como  a  constituinte na  construção  narrativa  da  verdade  social  pública,  sendo a  grande  responsável  pela  massificação  de  informações nas sociedades populosas contemporâneas, tornando-se fundamental colocá-la sob a lente analítica de como ela conduz a construção de um inconsciente coletivo. Na medida em que o desconhecido sobre a  alteridade  é  mediado  pelos  discursos  midiáticos,  portanto,  é  fundamental  exercitar  o  olhar  crítico  e atento sobre  o  condicionamento  ou  a  legitimação de visões de mundo e qual seu impacto na estruturação de sociabilidades contemporâneas – pacíficas, mediadoras de tolerância ou promotoras de exclusão social. Isso é importante, por exemplo,  no  que  se  refere  aos  estereótipos,  super generalizações  construídas  socialmente e que são colocadas como arquétipos de determinados grupos sociais, assim como Kelvin, limitando significados do que é ser homossexual e a própria interpretação social sobre o outro.

Por outro lado, na esteira de ativismos sociais de mídia livre e de alterglobalização – a exemplo da Cúpula Mundial pela Sociedade da Informação de Genebra  (2003)  e Tunísia  (2005)  e,  mais  recentemente,  Justice for George Floyd (2020),  – é possível ver movimentos  sociais  contemporâneos,  fortalecidos pelas novas ferramentas, erguendo suas barricadas contra racismo,  xenofobia,  estereótipos,  sexismo,  homofobia  e  outras  violações,  reivindicando estruturas sociais mais democráticas. São dinâmicas que desconfiam  das  estruturas  políticas  institucionalizadas,  mas  também  fazem um forte questionamento à mídia, buscando construir novas versões e estéticas sócio-culturais.No  final  da  década  de  1990  e  início  dos  anos  2000,  enquanto  os  impactos ambientais do aquecimento global e os desequilíbrios ecológicos provenientes da crise do petróleo eram discutidos nos âmbitos político e econômico, o conceito de greenwashing se fortalecia em meio aos estudos de comunicação, marcas e sociedade. Aos esforços  científicos  em  comunicação,  o  termo  era  e  ainda  é  relevante,  porque  envolve  a  construção  de  uma  camada  discursiva  dissimulada  sobre as práticas comerciais, reconhecendo que os apelos da sustentabilidade são estímulos potentes ao consumo. Ou seja, é fato que os últimos 30 anos estão servindo de piloto para a discussão sobre o que a mídia oferece e pode oferecer para a sociedade. Mas algo mudou até aqui?

“Mudar” é uma palavra poderosa nesse texto. Talvez a etimologia da palavra traga outros significados consigo. No entanto, passando a olhar como uma análise quase que bibliotecária, o conceito de espelhos da biblioteconomia pode auxiliar nessa pergunta. Discutir, por exemplo, como crianças e adolescentes olham para a literatura e se veem refletidos hoje em dia é algo muito positivo, poderem se sentir vistos, até amados – como pessoas de valor. Para os espectadores e leitores queer essa representatividade melhorou. Pedi a alguns amigos que me ajudassem a criar uma lista de personagens queer e trans na mídia convencional, e em menos de meia hora nomeamos mais de 20 personagens, incluindo aqueles de alto perfil como Alex e Maggie em Supergirl e Klaus de The Umbrella Academy. Porém, nenhum dos personagens que pudemos nomear era pobre ou discutia a pobreza, e a representação queer é em grande parte branca e, muitas vezes, ainda negativa. 

Uma diferença positiva e importante sobre a temática em que Hollibaugh escreveu é o aumento do acesso e uso da internet. Embora, como observa Ridgway, as pessoas queer e pobres ainda sejam em grande parte invisíveis na mídia convencional, a internet deu a algumas pessoas plataformas para falar sobre suas vivências. Autostraddle cobre mídia queer e trans mainstream e independente, bem como notícias relevantes, incluindo artigos que olham para a intersecção de identidades queer e trans e pobreza. Em outro nível, essa prática também existe. A própria AJN possui em sua rede de jovens comunicadores pessoas queer articulando a educomunicação em território nacional e internacional.

Logo, afastando-se das problemáticas algorítmicas e da conceituação de necropolítica digital, as mídias sociais agora também desempenham um papel fundamental na criação de mais representatividade, porque permitem que os fãs exijam que os criadores e marcas lhes deem os espelhos que desejam. Como exemplo, vemos Hashtags do Twitter como #giveelsaagirlfriend, que empurram franquias tradicionais como a Disney a reconhecer seus fãs queer e refletir sobre como esses fãs estão ausentes da tela. Mesmo que as campanhas nas redes sociais não criem mudanças – embora às vezes criem, como quando os fãs do The 100 criaram o The Lexa Pledge – uma movimentação nas redes que levaram a volta da personagem lésbica para a trama, entre outras movimentações no ambiente digital.

As mídias sociais e outras plataformas online permitem que os fãs digam quem, discutam e desfrutem de mídia queer juntos, em vez de isoladamente, mas também capacitam criadores queer e trans a criar suas próprias mídias. A comunidade webcomic é um ótimo exemplo; há dezenas, provavelmente centenas de webcomics queer, como Band Vs. Band de Kathleen Jacques, entre outras cartunistas que escrevem sobre questões trans e a vida cotidiana em suas webcomics. Ou seja, a internet permite que pessoas queer e trans criem representatividade e se envolvam com a representação existente e mainstream.

A questão de saber se a representação melhorou ou não, então, pode ser respondida dividindo essa pergunta em três:

  • A representação melhorou para as pessoas queer? Sim, mas ainda tem um caminho a percorrer.
  • A representatividade melhorou para pessoas trans? Sim, um pouquinho – mas nem de longe tanto quanto para pessoas cis queer.
  • Melhorou para pessoas queer e trans, potros e pobres? Na verdade, não.

Sendo  assim,  esse  contexto  digital  contemporâneo  permite  mais  recursos  materiais  para  a  validação  identitária  e  comunicacional  dos  indivíduos e, como se quer discutir aqui, inclusive das marcas. Se, portanto,  no  contexto  dos  indivíduos,  podem  ser  chamados  de  “rupturas  performáticas” (POLIVANOV; CARRERA, 2019) os desencaixes entre a  comunicação  de  si  e  os  comportamentos  sociais , os  efeitos  dessas lacunas são intensificados pelo cinismo já previsto historicamente e solidificado nas relações entre consumidor e comunicação de mídia. Nesse sentido, se no contexto dos indivíduos, as rupturas performáticas, ou seja, a discussão sobre inclusão e visibilidade implicam em gerenciamentos de si, das situações e das narrativas obtidas, se nestes processos interacionais, o que está em jogo é a reputação identitária dos sujeitos, implicando em manutenção da autoestima e pertencimento, no caso da conjuntura das marcas, o que está em jogo é sua imagem corporativa, que implica em  gerenciamento  de  uma  identidade  em  prol  da  permanência  mercadológica  e  da  fuga  constante  dos  penosos  gerenciamentos  de  crise.  A  percepção  dessas  rupturas  performáticas  se  manifesta,  na  conjuntura das marcas, em percepção de “washing”, ou seja, em dissimulação  percebida  ou  evidente  incoerência  expressiva.  À vista disso,  todo o aparato discursivo e operacional que envolve o funcionamento de uma empresa (por ex., publicidade, pontos de venda, embalagens, produtos, parceiros, fornecedores, influenciadores e por aí vai) pode ser utilizado como reforço ou empecilho para a manutenção da sua coerência expressiva.

Por isso, devemos falar sempre que possível e pedir mais representatividade não apenas para que as pessoas queer e trans pobres se vejam refletidas, mas para ajudar os outros a reconhecer o quão profundamente prejudicial os estereótipos ou não representações são para a sociedade como um todo. Mais e mais criadores de conteúdo estão falando sobre consciência social – e muitos estão falando abertamente sobre isso e fazendo parcerias com marcas multimilionárias. Podemos ir um passo além de colocar os personagens nos livros e drags em horário nobre nas TVs. No meu caso, como comunicador social, sou representante de uma grande área que influencia o consumo, os símbolos sociais e quem ocupa esses espaços. Trabalhando hoje com influenciadores, meu maior privilégio é poder ditar quem será ou não contratado para divulgar os produtos que trabalho, poder alavancar outras narrativas e colocar rostos diferentes do meu na publicidade tradicional é gratificante. Mas é desafiador.

Ao refletirmos sobre como quem está fora das experiências com a mídia, seja digital ou offline, é evidente a violência dentro da esfera midiática. Afinal, raça, gênero e classe social perpassam por esferas da construção da sociedade atual. Sociedade essa que não foi pensada para corpos dissidentes, e sim para corpos normativos. De um lado, quando buscamos construir análises interseccionais imprescindíveis sobre a mídia é para contribuir na representação, tanto com aquilo que nos atravessa, quanto do que destitui o outro; Por outro, o ativismo queer transviado ainda busca fundamentações teóricas transviadas não brancas e do sul global que possam causar mudanças significativas na mídia. E quanto mais transviado, pobre ou racializado você é, menos redes de segurança e visibilidade você possui. 

Por fim, a batalha pela representatividade na mídia continua sendo crucial, não apenas para que os indivíduos se vejam refletidos, mas também para desafiar os estereótipos e promover uma compreensão mais completa e inclusiva da diversidade humana. No entanto, o caminho à frente é complexo, exigindo uma abordagem interseccional que leve em consideração não apenas orientação sexual e identidade de gênero, mas também raça, classe social e outros fatores que moldam as experiências das pessoas na sociedade e na mídia. É essencial continuar a demandar representatividade e promover narrativas diversas, desafiando assim as normas midiáticas preconceituosas e construindo uma sociedade mais igualitária.

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