Conheça o Instituto de Sustentabilidade protagonizado por Povos de Terreiro
Em entrevista, Rodrigo Carneiro fala do Terreiro Sustentável, instituto em prol da manutenção e divulgação de saberes ancestrais de povos de terreiro, que cuidam da Natureza e resistem à crise climática
Por Erica Lima
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Com o princípio de que nossos corpos e a natureza são a morada dos orixás, nkisi, voduns e encantados, o Instituto Terreiro Sustentável visibiliza os povos tradicionais de terreiro como protagonistas na luta pela preservação da Natureza contra as mudanças ambientais. É na articulação de estudos, oficinas e comunicação digital, dentre outras ações, que pessoas de axé levantam suas vozes para defender seus saberes ancestrais e contemporâneos e suas identidades
As populações e tradições de matriz africana tem como cosmovisão elementos da natureza como sujeitos e divindades, e não é nova sua participação no engajamento pela justiça climática e pela descolonização da sociedade.
Por exemplo, vemos seu empenho nos debates ambientais há décadas, a exemplo da participação na ECO-92, e também na formulação de iniciativas como a Agenda 2030 dos Povos de Terreiro, lançada pelo Instituto Terreiro Sustentável e feita a muitas mãos.
O objetivo da iniciativa é legitimar e aproximar sua visão cultural, epistemológica e holística aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) elegidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) na Agenda 2030.
Como? Relacionando um orixá (divindade cultuada, do yorubá ‘‘dono da cabeça’’) a cada objetivo da Agenda 2030. A Agenda 2030 da ONU é um plano de ação global que reúne 17 objetivos de desenvolvimento sustentável e 169 metas para redução de desigualdades e preservação do planeta para as próximas gerações até 2030.
A partir da apropriação dos ODS, povos de terreiro em sua própria formulação adequam uma metodologia sustentável que faz sentido a suas realidades e espiritualidades e elegem seus próprios objetivos.
Além de reconhecer tal documento criado pelas pessoas de axé, é importante entender que os povos tradicionais de terreiro sempre cultivaram um respeito mútuo com a Natureza, a vendo como morada dos ancestrais. Em outras palavras, sua luta não vem dos últimos anos, em vez disso é uma herança milenar, passada de geração a geração. E, apesar dessa população ter como princípio epistemológico a ancestralidade e a manutenção da biodiversidade, ela é uma das mais afetadas pela crise climática e seu desequilíbrio, com condições em que o racismo ambiental, o racismo religioso e o epistemicídio convergem.
Por todo o Brasil, situações de intolerância religiosa contra povos de terreiro são divulgadas com frequência, como a destruição do Terreiro das Salinas em São José da Coroa Grande, Litoral Sul de Pernambuco, a queima da estátua de orixá Ogum na Prainha do Lago Sul, os casos de perda de guarda de crianças por mães praticantes de religiões de matriz africana e os casos de discriminação contra pessoas de axé por suas vestimentas e rituais, entre outros.
Frente a todos esses ataques, é perceptível que os povos de terreiro precisam ter seus direitos assegurados e protegidos, de modo que ações políticas e sociais levem em conta suas especificidades culturais e sua soberania. Junto ao apoio, é preciso também ouvir pessoas de axé falando em primeira pessoa, com autonomia, sobre sua resistência, multiplicidade e cosmovisão legítima para que disputem narrativas, sem tutelas, sendo protagonistas de suas histórias.
É por isso que eu, Erica Lima, a mais nova colunista da AJN, converso com Rodrigo Carneiro, babalorixá e presidente do Instituto Terreiro Sustentável, numa entrevista muito potente. A seguir abordamos questões como racismo ambiental, racismo religioso, resistência, ancestralidade e a continuação da luta dos mais velhos pelas juventudes.
Erica Lima (EL): Babazinho, é um prazer te ter aqui conosco. Fale um pouco sobre você. Como começou sua jornada com o candomblé?
Rodrigo Carneiro (RC): A minha trajetória começa aos 6 anos de idade, quando a minha mãe carnal se inicia no candomblé e ela precisa que eu estivesse junto dela. Esse processo, pra mim, não foi tão estranho porque a minha família já vinha de terreiro. A minha avó pernambucana vem para o Rio de Janeiro e aqui ela conhece os terreiros de umbanda e começa a se desenvolver, e tem todo um processo de uma religiosidade afro de resgate. E, dentro dos terreiros, aquilo que mais me chamava atenção era a parte das folhas. Eu queria pertencer, né?
Eu via que todo mundo dentro do terreiro tinha uma função, todo mundo fazia alguma coisa e muitas vezes eu ficava lá brincando, mas eu não queria brincar, eu queria fazer parte. E o sacerdote com quem minha mãe se iniciou me colocava responsável por cuidar das plantas, o omieró, o banho de ervas. Eu achava aquilo o máximo! Eu me sentia macumbeiro quando eu fazia aquilo dali, eu me sentia pertencente ao terreiro quando fazia esse processo. Então, eu cresci e comecei a ter maior entendimento. A minha escolha pela sustentabilidade e por fazer biologia [na graduação] vem das minhas práticas de terreiro.
O terreiro da minha mãe, por eu estar muito próximo das folhas, me fez gostar de botânica, de querer saber como funcionava a folha, qual era o princípio ativo… Eu achava aquilo o máximo, eu ver a pessoa tomar um banho de erva e ficar bem. Por que ela ficava bem? Eu queria entender o que tinha naquela folha. Existia uma sabedoria ali dos terreiros e eu queria saber de onde vinha essa sabedoria.
Daí eu começo a fazer biologia pra tentar compreender um olhar diferente daquele que eu já tinha a partir dos terreiros. Quando eu entro na biologia, eu vejo que, tudo aquilo que eu já sabia do candomblé, a academia falava a mesma coisa. E era estranho, porque a academia dizia que aquele conhecimento de terreiro era uma ‘‘pseudociência’’ e aquilo me incomodava muito.
Eu entro na faculdade buscando respostas diferentes, mas quando eu chego na faculdade eu descubro que aquilo que eu aprendi no terreiro, na verdade, era o que a faculdade tinha pra me ensinar. Então, o que me torna biólogo não é a faculdade. Eu tenho uma formação de biologia pelos terreiros. A faculdade me ensina que eu preciso preservar a natureza, o candomblé me ensina a mesma coisa: que sem folha não tem orixá, sem água não tem orixá. A faculdade me ensina que meu corpo é importante, mas a faculdade dos terreiros já me ensinava que o meu corpo é a morada dos orixás, é a coisa mais sagrada que posso ter e que devo respeitar como ele funciona.
EL: Como surgiu o Terreiro Sustentável? E quais são suas ações hoje em dia?
RC: O Terreiro Sustentável surge a partir de uma necessidade dos próprios irmãos e irmãs dos terreiros. Depois que eu faço biologia, eu vou tentar um mestrado, consigo fazer um mestrado na UERJ FFP com a professora Ana Angélica, que é botânica, e nós trabalhamos com a linha de biodiversidade a partir do ensino de ciências. Então, eu começo a estudar o presente de Iemanjá de Sepetiba, entendendo ele não como uma ritualística somente, entendendo ele como uma grande sala de aula, onde eu poderia trabalhar educação ambiental e resgatar muitos dos conceitos, saberes e fazeres afro brasileiros. Eu crio e resgato formas sustentáveis de fazer oferenda. As pessoas começam a me procurar querendo aprender a fazer essas oferendas. Então eu acabo meu período de mestrado, só que as demandas continuam. Eu percebi que não poderia parar ali no mestrado esse trabalho. A partir daí, eu crio o Terreiro Sustentável. Ele tem o objetivo basicamente de resgatar as nossas tradições e preservar todos os seres vivos, os espaços sagrados e tudo aquilo que nos mantém em equilíbrio com o nosso planeta. Hoje o Terreiro Sustentável tem alguns carros-chefes, como as oficinas de balaio sustentável e as consultorias para terreiros em relação a como tornar um terreiro sustentável. A gente faz mutirão de limpeza em áreas de proteção ambiental. Nós fizemos o primeiro curso de formação em educação ambiental voltado para povos e comunidades de matrizes africanas, tendo em vista os 17 objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS), onde nós recriamos os ODS a partir da cosmovisão, dos saberes e fazeres ancestrais dos povos e comunidades de matrizes africanas. Nós criamos metas para que o nosso povo se sinta incluído nessa política mundial, já que ela contempla geralmente a grande massa. As minorias nem sempre conseguem ser incluídas e participar efetivamente. O Terreiro Sustentável está nessa pegada de incluir os terreiros também nessas discussões para as políticas públicas. Para nós, povos de terreiro, os ODS não são novidade. É uma novidade para a ONU, mas para nós os 17 ODS sempre existiram.
EL: Como os espaços sagrados de terreiro são impactados pelo racismo ambiental?
RC: Entendendo que a crise climática não atinge todo mundo da mesma forma, ela vai atingir justamente os povos que são minorias: os pobres, os pretos, os LGBTs e, principalmente, as mulheres negras. Então, a gente pensa numa questão de justiça climática a partir das minorias. Se a gente entende que os povos e comunidades de matrizes africanas, assim como os parentes, os povos originários, serão os mais atingidos, pensamos: Por que? Porque a nossa relação com o meio ambiente é simbiótica. Não existe uma vivência, uma relação de possibilidade de vida sem a natureza. Nós não conseguimos sobreviver sem a nossa alimentação, que é própria dos nossos povos, sem acesso aos espaços naturais sagrados, o mar, a mata, a cachoeira, a montanha. Esses espaços fazem parte do nosso corpo. [Precisamos] entender que, numa crise climática, o impacto ambiental nesses espaços vai atingir diretamente os povos e comunidades de matrizes africanas, impossibilitando a manutenção da vida, da cultura e da religiosidade. A gente precisa trazer essas discussões para dentro das UTT, das unidades territoriais tradicionais, que são os terreiros, para que a gente se empodere dessas discussões e possa dialogar de forma igualitária, senão a gente sempre fica a mercê da decisão dos outros. Precisamos mudar essa realidade e eu tento, a partir do meu trabalho, da minha militância, daquilo que eu acredito, levar um pouco dessas discussões para dentro dos terreiros.
EL: Como foi a produção da Agenda 2030 dos Povos de Terreiro?
RC: Eu acredito que para um documento ser legítimo, para que fale pelo seu povo, ele precisa ser feito a muitas mãos. Tudo começa quando eu tenho essa vontade de dialogar com os terreiros, mas eu reparo as agendas tanto da ONU quanto do Brasil quanto a estadual — e de vários estados do Brasil — não contemplam os povos de matrizes africanas. Então, eu pensei assim: A partir do curso de formação, nós vamos discutir o que nós vemos e o que nós entendemos daqueles ODS. Então, por exemplo, os ODS 1 e 2 falam da questão da fome e da erradicação da pobreza. Nós, povos e comunidades de matrizes africanas, não conhecemos a fome, porque nós entendemos que a fome é um negativo, então cultuamos a prosperidade sempre, a fartura de Oxossi. O nosso olhar diante desse ODS é um outro olhar. Nós não vemos o mundo a partir de coisas negativas, nós vemos o mundo a partir da positividade. Então, trabalhando o ODS 2, de erradicação da fome, nós entendemos que devemos cultuar a fartura, Oxóssi. Entendemos que quem acaba com a fome é Oxóssi. Se há fome é porque Oxóssi não está sendo cultuado direito, porque os princípios de Oxóssi não estão sendo propagados. Isso foi feito com todos os ODS. Foram ao todo 270 terreiros de todas as regiões do Brasil, e nós conseguimos traduzir os ODS a partir dos nossos olhares e criamos metas a partir disso.
EL: Quais são as maiores reivindicações dos povos de terreiro na atualidade?
RC: Eu vejo que hoje o principal problema é a manutenção das tradições. Infelizmente, o capitalismo afastou os povos e comunidades de matrizes africanas da sua forma de culto. Introduziu o dinheiro, mas de forma negativa. Então, hoje, para continuar e fazer a manutenção dessa cultura, ela é muito cara. E isso impossibilita muitos dos nossos de permanecer. Hoje eu identifico que, diante de várias situações dos terreiros, a conta de luz é muito cara, a conta de água é muito cara, a alimentação é muito cara, o acesso a alguns lugares é muito caro, [a falta de acesso] aos materiais que fazem parte da nossa cultura, que geralmente não é produzido pelos nossos, acaba impossibilitando a preservação desses saberes e fazeres. Então, hoje, o principal problema que eu enxergo é a economia. A gente precisa pensar em uma economia circular e solidária dentro dos terreiros. Nós entendemos que cada terreiro pode ser um polo de educação ambiental e um polo econômico. A gente não entende que a cultura, a soberania alimentar, a educação são coisas separadas. Nós entendemos que tudo isso é uma cadeia com vários elos e a economia une elas. A gente precisa que os nossos tenham acesso a uma educação de qualidade, precisamos fomentar alimentos de qualidade, precisamos fomentar espaços de qualidade. E tudo isso gira em torno da economia. Então, trazer a economia para dentro dos terreiros, hoje, eu acredito que é a principal forma que a gente pode [usar para] preservar os povos de terreiro. Pensar o terreiro para além da religiosidade, mas como um ponto de cultura, um ponto de educação, um ponto de acolhimento, é trazer ao terreiro uma importância que, por vários motivos, como o racismo estrutural, ele deixou de ter.
EL: O nosso povo honra a ancestralidade, os mais novos dão seguimento às lutas dos mais velhos. Para você, qual é o papel da juventude de terreiro frente às mudanças ambientais?
RC: Eu tenho certeza que o papel da juventude é de resgatar os saberes e fazeres ancestrais. Ailton Krenak, nosso parente, diz que o futuro é ancestral. Então, assim como Sankofa olha para trás para resolver os problemas de hoje, a juventude deve utilizar dessa sabedoria para que o futuro seja garantido. Hoje vocês são juventude, mas amanhã vocês serão os griots, serão aqueles que passarão o conhecimento. Então, é uma determinação dos povos e comunidades de matrizes africanas que os jovens aprendam para que amanhã eles possam ensinar. Dentro do culto tradicional, nós falamos o seguinte: só pode se levantar para ensinar aquele que um dia se sentou para aprender. Eu acredito que a juventude deve se utilizar das tecnologias, dos meios de comunicação, das mídias sociais para divulgar a sabedoria ancestral, para divulgar o conhecimento que está restrito muitas vezes aos muros do terreiro. Vocês precisam utilizar toda essa facilidade tecnológica que vocês possuem a favor. Utilizar isso como uma adaga de Ogun, com a qual ele abre o caminho. Hoje não temos necessidade de abrir o caminho com uma adaga, uma foice, nós podemos abrir vários caminhos com video, podcast, com um texto bem escrito. É usar dessas ferramentas, pois, assim como Ogun é o senhor da tecnologia, das armas, hoje Ogun é as redes sociais, é a internet, é o contemporâneo que utilizamos. Então, entender e fazer essas conexões é extremamente importante para que os jovens possam gerar frutos, para que amanhã os seus descendentes também tenham uma tradição, uma sabedoria e um fazer ancestral para viver.
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