Como a série Outlander se relaciona com o Marco Temporal?
Por um lado, um cenário fictício romântico. Por outro, a mais dura realidade. Se você quer saber como a série “Outlander” se relaciona com uma das questões ambientais atuais no Brasil, continua rolando pra baixo para entender como esses dois assuntos se conectam 🙂
Por Duda Matias
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Outlander é uma daquelas séries que envolvem viagem no tempo e romance épico, além de trazer diversos temas sociais do séc. XVIII. Embora a produção seja focada em um romance, é possível associá-la ao Marco Temporal, e eu vou te dizer como!
Mas primeiro, o que é o Marco Temporal?
O termo “marco temporal” se refere a uma tese jurídica que argumenta que os povos indígenas têm o direito de reivindicar a posse apenas das terras que ocupavam ou disputavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição Brasileira. Ou seja, qualquer terra que não estivesse ocupada por comunidades indígenas nessa data não teria direito à demarcação.
Eu sei, é meio difícil de entender, mas continua aqui que vai ficar melhor!
Toda essa história começou quando a Constituição de 1988 reconheceu os direitos indígenas à terra, mas não estabeleceu critérios específicos para a demarcação de terras. Isso deixou espaço para interpretações diferentes e, posteriormente, disputas que vêm ocorrendo até hoje.
O surgimento específico da tese não tem uma origem única e claramente definida. Porém, em 2009 ela ganhou notoriedade quando utilizada no âmbito do STF (Supremo Tribunal Federal) como um dos critérios para a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Nos últimos anos o debate acerca do Marco Temporal vem ganhando mais força através da mídia e, também, pela pressão política.
Ta, mas e a série nessa história?
Outlander não tem o foco nos indígenas, entretanto, a partir da 4ª temporada os personagens principais tem mais contato com povos originários da América do Norte, e é exatamente nesse contexto que vamos trabalhar.
Dentro da trama o desencontro de culturas e o cenário de colonialismo são bem evidentes, apresentando conflitos territoriais entre os povos e os trabalhadores rurais, além de problemas com a própria monarquia da época, que muitas das vezes só enxergava o seu próprio lado.
Parece familiar?
Além disso, existe a relação dos direitos territoriais. Outlander se passa no contexto das guerras jacobitas, tendo que enfrentar lutas inacabáveis para ter a posse de território, assim como os indígenas brasileiros também passam por uma luta contínua buscando a demarcação e a proteção de suas terras ancestrais.
Tanto a série quanto a questão indígena exploram e contextualizam eventos históricos. “Outlander” faz isso na Escócia do século XVIII, enquanto a questão indígena no Brasil está enraizada em eventos históricos, como a colonização europeia, a escravidão indígena e a luta por autonomia.
Ainda falando sobre a série, diversos momentos de aproximação entre os povos nativos com os colonos são mostrados, e esses trocam interações respeitosas e amigáveis entre si. Claro, não é a maioria, mas já mostra um princípio de diálogo e equilíbrio entre esses grupos que pode, inclusive, ser trazido para a realidade.
Nota: Apesar de isso não excluir os efeitos de comparação, é importante relembrar que “Outlander” é uma obra ficcional, e as discussões em torno do marco temporal são uma realidade.
Dito isso, como está essa situação jurídica hoje?
Depois de longos anos de história, somente no dia 21 de Setembro de 2023 que o STF chegou a uma conclusão. A tese do Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas foi derrubada por 9 votos a 2, argumentando que a data da promulgação da Constituição Federal (5 de Outubro de 1988) não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra por essas comunidades.
Esse julgamento é um dos maiores já registrados no STF, se estendendo por 11 sessões, significando que não foi uma decisão fácil, existindo muitas complexidades a serem analisadas. A resolução foi baseada em aspectos ancestrais, no que diz respeito à proteção constitucional das áreas ocupadas e das que possuem vinculação com a tradição dos povos indígenas. E, também, foi apoiada nos direitos fundamentais abordando temas como dignidade étnica.
Na direção oposta, no dia 27 de Setembro de 2023, o Plenário do Senado aprovou o projeto que regulamenta os direitos originários indígenas sobre suas terras (PL 2.903/2023), transformando a tese do marco temporal em lei.
Com 43 votos favoráveis e 21 contrários, esse projeto já estava aprovado na Câmara desde maio. Neste momento, o PL segue em sanção ao presidente Lula, e ainda há dúvidas sobre a possibilidade de veto total ou parcial. Caso o presidente vete o projeto de lei, o Congresso discutirá sobre uma possível derrubada do veto.
A questão, como vocês podem ver, é bem complexa e confusa. Tem-se essa “rivalidade”, essa tensão entre o STF e o Congresso, não só quando trata dessa PL, mas também em outros assuntos, como a discriminalização das drogas e legalização do aborto; porém, deixamos isso para outro texto.
De uma coisa podemos ter certeza: essa decisão vai guiar as próximas resoluções de temas parecidos e poderá se relacionar diretamente com outras questões jurídicas envolvendo a população no geral.
*Obs.: Para entender como funciona o processo de aprovação de uma lei com mais detalhes clique aqui.
Importante saber:
- Cientistas do mundo todo seguem demonstrando como as terras ocupadas tradicionalmente pelos povos originários são as áreas com maior biodiversidade e vegetação mais preservadas.
- A ONU (Organização das Nações Unidas) e a OEA (Organização dos Estados Americanos) se manifestaram contra a tese do marco temporal.
- A CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos) reafirmou que a aplicação desta tese contradiz as normas internacionais e interamericanas. Em particular, porque não leva em consideração os inúmeros casos em que os povos indígenas foram deslocados à força de seus territórios, muitas vezes com extrema violência, razão pela qual não estavam ocupando seus territórios em 1988.
- O projeto de lei (PL 2.903/2023) prevê também a possibilidade de exploração econômica das terras indígenas, inclusive em cooperação ou com contratação de não indígenas. A celebração de contratos dentro desses casos dependerá da aprovação das comunidades, da manutenção da posse da terra e da garantia de que as atividades realizadas gerem benefício para toda a comunidade impactada.
- O processo de demarcação e homologação das terras indígenas é extenso, passando pela Funai, pelo Ministério da Justiça e pelo presidente.
- 29% do território ao redor das Terras Indígenas está desmatado, enquanto dentro das mesmas só tem 2% de desmatamento.
*Terras indígenas: As terras indígenas, segundo a Constituição, são aquelas habitadas em caráter permanente, utilizadas para atividades produtivas, imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar de seus ocupantes e necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Indígenas têm a posse e usufruto exclusivo dessas terras, que são inalienáveis, e não podem ser removidos dali senão em casos de riscos excepcionais — devendo retornar assim que cesse o risco.
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