Brasil, de amor eterno seja símbolo?
Para entender o ódio contra a mulher no 5º país com maior taxa de feminicídio no mundo.
Por Fernanda Filiú
–
O hino nacional brasileiro menciona um grande desejo da nação verde-amarela. O anseio de fazer o Brasil símbolo de amor eterno se atrela tanto ao amor pela pátria, quanto à vontade de um futuro de paz para o país. A 10ª estrofe da canção indica o querer do poeta de que as estrelas estampadas na bandeira nacional, representantes dos estados brasileiros, sejam símbolos de amor eterno. Mas, seria o Brasil a melhor representação desse amor?
Construído por um sistema misógino, o Brasil se consolidou ao longo de seus 522 anos como um dos países mais violentos para mulheres. Estampando a 5º posição no ranking mundial de feminicídios, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), o país se tornou casa de discursos e atos de ódio contra mulheres de todas as cores, raças e etnias.
Como pode, portanto, um país desejado como símbolo de amor eterno estar ligado a índices tão altos de violência?
Ainda no primeiro semestre de 2022, o Brasil bateu recorde de feminicídios. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em média quatro mulheres foram mortas por dia entre janeiro e junho. O fato aconteceu durante um período de recessão das políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher, dado ainda durante a vigência do mandato de Jair Messias Bolsonaro. Nesse mesmo ano, Bolsonaro reduziu radicalmente os recursos destinados à causa. Ao retirar a compreensão de gênero de sua posição de estrela-guia na promoção de políticas para mulheres, o ex-presidente reafirmou um ciclo de violência comum no Brasil: a misoginia.
Entretanto, apesar da mudança de governo e do posicionamento positivo do atual presidente no combate à violência contra a mulher, o Brasil ainda mantém altos índices de feminicídios, casos de assédio e agressão contra mulheres. De acordo com a 4ª edição da pesquisa “Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, entre as mulheres entrevistadas:
28,9% das mulheres relataram terem sido vítimas de algum tipo de violência ou agressão, a maior prevalência já verificada na série histórica.
Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil – 4a edição – 2023, p.21

As várias faces da violência
Desde o assédio na rua, no trabalho e em casa, até agressões físicas e verbais nesses mesmos ambientes, as marcas da violência perpassam todas as esferas da vida da mulher. Apesar dos diferentes tipos de violência, e das individualidades das vítimas, há uma certeza: o impacto de uma violência não é livre de danos. Muitas vezes ferindo o corpo e também a alma, a violência de gênero se propaga em um efeito dominó.
Lenore Walker, importante pesquisadora para os estudos sobre violência, identificou a existência do chamado “ciclo de violência”, formado por 3 fases. Segundo a teoria de Walker, o abuso ocorre em espirais previsíveis, compostas pelas fases de aumento da tensão, ato de violência e arrependimento e comportamento carinhoso, ou seja, a reconciliação. Porém, sabe-se que as relações estabelecidas por meio do abuso e violência se encontram em um sofrimento crescente, com pouco potencial de diminuir.
Iniciado silenciosamente, o ciclo de violência coloca mulheres em uma posição de risco, além de silenciá-las. Já os agressores, protegidos pelo sistema misógino homicida, constroem uma imagem de bons companheiros, dificultando a evidenciação da violência pela mulher e por outros.
A violência de gênero impacta a todos e expressa em seu entorno uma ‘dinâmica do silêncio’ […] Esse silêncio se torna um obstáculo para o diagnóstico da situação, uma vez que fatores culturais e sociais, como mencionado, mas também a falta de orientação das vítimas e dos profissionais envolvidos no acolhimento e atendimento a elas faz parecer que ambos os grupos de sujeitos envolvidos — vítimas e profissionais — têm receio em lidar com os desdobramentos da violência
(LUCENA et al., 2016; SCARPATI, 2022). Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil – 4a edição – 2023, p.44
Um problema de saúde pública
A violência contra a mulher causa sérios problemas à saúde física, mental e sexual, muitas vezes levando à morte. Segundo o estudo “Elas Vivem: dados que não se calam”, baseado em dados da Rede de Observatórios da Segurança, lançado na última segunda-feira, 6, aponta que a cada dia do ano passado houve pelo menos uma morte por feminicídio nos 7 estados estudados. Entre São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Maranhão, Ceará e Piauí, São Paulo lidera o número de casos.
De acordo com o estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o número estimado de casos de estupro no Brasil por ano é de 822 mil, o equivalente a dois por minuto. Infecções sexualmente transmissíveis, como HIV, sífilis e gonorreia, gravidez indesejadas e problemas ginecológicos também são consequências desse crime que afeta mulheres de todas as idades no país.
Além disso, a violência é um fato determinante entre as mulheres que cometem suicídio. Apesar de um fenômeno complexo, com muitos fatores envolvidos, mais de 90% dos suicidas foram acometidos por transtornos mentais antes do óbito, estando a depressão presente em mais da metade dessas mortes, segundo dados do relatório “Saúde 2020/2021: Uma Análise da Situação de Saúde e da Qualidade da Informação”. Transtornos na infância e eventos traumáticos, também estão entre as principais causas do suicídio.
Segundo resultados de uma versão do relatório de mesmo nome, porém publicado em 2017, a taxa média de casos de suicídio para a população feminina, entre 2011 e 2015, foi de 2,1 óbitos por 100 mil mulheres da população em geral. Entretanto, para as vítimas de violência notificadas por qualquer tipo de violência, registrou-se 64,4 de taxa, sendo o risco 30,6 vezes maior.
De fato, os dados nos mostram que o Brasil abandonou suas mulheres.
A Pátria, “mãe gentil”, fez dos filhos deste solo, filhos da violência. O eterno símbolo de amor, se tornou símbolo de feminicídio, de ódio e de dor. O Brasil abandonou quem o ergueu. Como poderemos mudar essa realidade?
.
