Banzeiro Òkòtó: A espiral de violência e resistência na Amazônia centro do mundo
Banzeiro Òkòtó, da jornalista, escritora e ativista brasileira Eliane Brum é um grito de desespero e denúncia da destruição socioambiental do Brasil atual. Investigando a fundo as causas e consequências dos impactos do capital na Amazônia Centro do Mundo, a produção nos leva a repensar posicionamentos e ressignificar a luta pelo futuro da vida presente na maior floresta tropical do mundo.
Por Fernanda Filiú
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Mergulhar no banzeiro de Eliane Brum é não retornar. Não retornar à ignorância, conformidade e aceitação de que o epicentro do mundo está tão próximo ao ponto de não retorno. De que a casa dos rios voadores que molham e fazem respirar o Brasil e o mundo não estará mais aqui em alguns poucos anos, caso nada seja feito. E que, principalmente, não haverá mais floresta ou os povos que nela habitam nem para contarmos histórias para as próximas gerações que, sinceramente, há dúvidas se existirá.
Por muito tempo tem se falado sobre o “fim do mundo”. Mas o agora é o momento mais próximo dos contos apocalípticos que nascemos ouvindo de nossos pais ou até mesmo assistindo a filmes distópicos, como o temeroso ano de 2012. O problema é que as distopias estão se aproximando cada vez mais da realidade, e ainda parece que poucos ligam para o caos que espera a humanidade em menos de 7 anos.
Banzeiro é como os povos da floresta chamam a parte onde o rio é feroz, ou seja, onde há brabeza e também muita coragem por parte de quem o enfrenta. E Òkòtó é a expansão de dentro para fora, espiral que em cada movimento se amplia. O banzeiro de Eliane atrai e se mistura a todos que lutam pelo futuro amazônico e sua espiral de conhecimento se circunda aos que buscam entender a realidade nada agradável da Amazônia atual— e essa resenha é resultado desses encontros.
Banzeiro Òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo
Eliane Brum, em Banzeiro Òkòtó, não traz esperança e tampouco acalenta os corações daqueles que ligam, pelo menos, o mínimo, para o meio ambiente e os povos que o protegem. A verdade é que Banzeiro Òkòtó mostra a realidade que não quer ser vista; pois ela é assustadora.
Formada em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Eliane Brum é gaúcha e possui uma potente trajetória no Jornalismo. Seja em seus artigos, colunas, livros-reportagens ou até mesmo nas ficções, a autora permite que os leitores estranhem tudo e a todos. A leitura de Banzeiro Òkòtó é, na verdade, um contínuo desconforto. O livro desperta sentimentos de desgosto, nojo, raiva e impotência, o que faz com que a leitura seja desconfortável, já que quem o lê é obrigado a se desfazer da comodidade e enfrentar a realidade normalmente ignorada.
Banzeiro Òkòtó, inserido na classificação de livro-reportagem, traz muitos detalhes sobre as contínuas e imparáveis violências sofridas pela floresta e, consequentemente, pelos povos-floresta. Dessa forma, o livro de urgência, a partir do exercício investigativo e profissional de Brum, se torna meio e passagem para uma profunda contextualização dos terrores envolvidos na cronografia da Amazônia, em uma espiral de luta, resistência, crimes e assassinatos.
Por meio de um jornalismo investigativo imersivo de alta qualidade, Eliane Brum faz seus leitores se banharem nos rios amazônicos e na destruição que os cercam. Além de potencializar o debate em torno da problemática histórica e cada vez mais urgente da Amazônia, a jornalista amplia a visão de quem somente enxerga o dilema amazônico a partir de discursos políticos anti-floresta ou pela visão generalista da mídia sudestina.
Quem é jogado por Eliane Brum nas histórias e no cotidiano dos beiradeiros do Riozinho ou do Rio Tapajós, não retorna ao pensamento obsoleto do que é ser e viver a Amazônia, assim como ela não retornou ao que era antes de suas viagens ao centro do mundo. A jornalista largou sua vida de mais de 20 anos na grande e cinzenta São Paulo para se aventurar na cidade que, em 2019, foi considerada a mais violenta do mundo. Altamira se tornou casa para Eliane e seu fiel escudeiro e dupla de reportagem, Lilo Clareto, morto pela COVID-19 durante a política de genocídio de Jair Bolsonaro em 2021.
Ao lado de Clareto, a autora se emaranhou nas árvores gigantes, nos rios cheios de vida e nas lutas dos povos-floresta. Eliane Brum deixa a comodidade de pautas supérfluas e comuns em Banzeiro Òkòtó e se entrega completamente à verdade amazônica. Fazendo do jornalismo sua principal arma de combate para a propagação dos fatos, a jornalista, junto aos humanes e não-humanes, luta contra as violências que os cercam e repercute suas denúncias para além do território nacional. Presente na linha de frente da guerra amazônica, Eliane Brum se faz combatente fundamental, além de se tornar porta-voz da resistência dos povos e da vida que habita a maior floresta tropical do mundo.
Publicado em 2021, Banzeiro Òkòtó traz em sua essência diversos desastres socioambientais acontecidos no território brasileiro nas últimas décadas, que desencadearam a bruta realidade da Amazônia atual. Apoiado historicamente pela contextualização de marcos violentos para a história do país como a ditadura militar-empresarial, a construção de Belo Monte, a expansão de atividades garimpeiras ilegais e a eleição e desgoverno de Jair Bolsonaro, o livro envolve a atividade de apuração e verificação jornalística da autora durante os 30 anos de carreira, bem como a narração pessoal de sua trajetória de vida para além do jornalismo.
Banzeiro Òkòtó é lançado durante a regência do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, um período sombrio especialmente para as comunidades originárias e tradicionais do país. Com foco no bioma amazônico, o livro aborda o esforço feito não só por Bolsonaro, mas também por outros governantes brasileiros na tentativa de manter e subsidiar crimes socioambientais na região da Amazônia.
Escrito com as lembranças e experiências de expedições realizadas pela autora desde os anos 2000, Banzeiro Òkòtó se mostra como uma produção humanizada. Como mulher branca e não-floresta, Eliane Brum tenta ao máximo se desvincular do poder da branquitude e do conhecimento do Ocidente. Como estrangeira, a jornalista entende o seu papel jornalístico por meio da humanização, da tentativa decolonial de investigação e entendimento das práticas e ciências das sociedades amazônicas. A exemplo disso, Eliane Brum parece desenvolver Banzeiro Òkòtó a partir de uma lógica anti cronológica. Os mais de 30 capítulos, escritos com linguagem neutra, não são referenciados pela enumerabilidade do Ocidente.
Localizados por uma sequência numérica iniciada no capítulo 11, continuada por números como 666, 87, 2018 e finalizada no capítulo #00, o seguimento numeral “comum” não se encaixa na imensidão da produção textual de Brum, e muito menos na temporalidade dos povos originários e tradicionais amazônicos. Ao compreender isso, a autora entendeu que perguntar sobre a idade, questionamento muito comum em entrevistas jornalísticas, não faria sentido para aqueles que se orientam pelas estações, pelos astros ou ciclos da natureza humana. Aliás, a idade é “o primeiro aviso dos povos da floresta de que aqueles mundos não cabem em linearidades” (BRUM, 2021, p.16).
Assim como estes mundos, os personagens de Banzeiro Òkòtó também não são lineares. Caminhando entre criminosos, sobreviventes e guerreiros, Eliane Brum mostra como a diversidade de fontes relata e auxilia a construção de uma narrativa de luta, identificando culpados, agressores e vítimas a partir de seus verdadeiros postos na realidade da guerra na Amazônia. Percorrendo o bem e o mal, a autora enfrenta as mais desafiadoras situações no epicentro da destruição socioambiental do Brasil, buscando auxiliar a validação da luta dos combatentes-floresta em um mundo descentralizado do próprio “Centro do Mundo”. Além de se entrelaçar com os problemas e contextos da temática central do livro — a denúncia, a defesa e o futuro da Amazônia.
Banzeiro Òkòtó é uma leitura indispensável para aqueles que procuram descobrir um pouco mais sobre as verdades por trás dos crimes e violências na Amazônia. Como o mais recente livro de Eliane Brum, Banzeiro Òkòtó é uma experiência literária imersiva e desafiadora. A autora não teme enfrentar os grandes criminosos ligados ao garimpo, ao contrabando ou a construção de grandes empreendimentos em territórios símbolos de vida. Eliane Brum aborda de forma calorosa e corajosa questões complexas que muitos não teriam o mesmo cuidado e humanização ao abordar.
A jornalista convida os leitores a questionarem até que ponto vai a maldade humana, repensando suas próprias crenças, ações e posicionamentos. Através da sua forma sensível de contar histórias, Brum instiga os leitores a repensarem a relação da sociedade contemporânea com o meio ambiente. Assim, Banzeiro Òkòtó é um grito de desespero por justiça e por ação, apresentado como uma última tentativa de mostrar ao mundo que vivemos em clima de urgência.
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