BADERNA! da plataformização à excludência do ser
O livro de Callum Cant: Baderna – Delivery Fight! A luta contra os patrões sem rosto , trata-se de um aprofundamento acerca da plataformização do trabalho, evidenciando a complexidade do fenômeno. Nenhum artigo ou livro é suficiente para abarcar de forma aprofundada todos os distintos contextos e dimensões do tema. Será no livro de Cant que encontraremos uma preocupação em analisar a organização do trabalho, a composição dos trabalhadores e as lutas deles. Além disso, vale destacar que o livro pode ser utilizado tranquilamente para estudar a luta de classes, essencialmente por ser latente e experienciado através de uma narrativa individual incrivelmente fluida.
Por Vitor Ranieri
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Callun Cant desejava ter uma fonte de renda, e acabou criando sua obra a partir de um olhar atento para tirania dos algoritmos de plataforma, e ao mesmo tempo para a articulação internacional dos entregadores para uma greve que reverberou em nível mundial. Em uma edição especial, chegou ao Brasil – com quase 250 páginas – publicada pela Editora Veneta no fim de 2020, Baderna – Delivery Fight! A luta contra os patrões sem rosto. Trata-se de um fiel retrato, sob a ótica de diferentes trabalhadores cujas histórias se cruzam, desde a luta militante até o dia a dia do trabalho, que antecede toda a aparência glamourosa dos aplicativos digitais, que carregam consigo as definições de inovação e digitalização, e ainda são consideradas as fontes fluviais de inspiração para o empreendedorismo, mas está muito distante da preocupação com quem é força motriz do funcionamento de suas redes. Enquanto lia Delivery Fight não pude deixar de recordar do artigo Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas, de Ludmila Abílio. Com seus pontos comuns e diferenças, o livro de Callum Cant faz parte do mesmo olhar que traz à tona críticas direcionadas para as plataformas digitais.
O fenômeno da plataformização comporta uma multiplicidade de abordagens. É possível discuti-lo sob o ângulo da datificação ou da influência digital, da sucateação dos direitos trabalhistas, entre outros tópicos que são reforçados ao longo da obra, mas em suma, sem qualquer obrigação de nenhuma das partes, o trabalho de plataforma se fundamenta no trabalho como mero fator de produção sem qualquer responsabilidade sobre a sua reprodução. A plataformização possibilita transformar o trabalhador sempre disponível para o trabalho, podendo ser utilizado na exata medida das demandas do capital, logo, quem está contratando. Em regra, as plataformas afirmam que são empresas do setor da tecnologia e apenas otimizam o contato entre tomadores de serviço e trabalhadores. Há, no entanto, um importante descompasso entre discurso e prática: embora se considerem como espaços virtuais em que tomadores e prestadores de serviços se encontram, as plataformas atuam muitas vezes como empregadores. Ou seja, ao mesmo tempo em que obrigam os trabalhadores a se reconhecerem como independentes, elas delimitam as margens de autonomia no trabalho, uma vez que decidem quando e onde trabalhar, penalizam a recusa de tarefas, e impõem taxas e padrões de qualidade não passíveis de negociação.
Por outra perspectiva, algumas pessoas tendem a comparar a plataformização com a Gig Economy, até mesmo na obra de Cuntt existem algumas críticas direcionadas para essa comparação, mesmo que G.E seja uma norma permanente da classe trabalhadora, sendo historicamente um processo de informalização do trabalho, e que vem muito antes da emergência das plataformas digitais – embora, com ela, tenha ganhado contornos e nuances. Então, gig economy não pode ser tomado como sinônimo do trabalho por plataformas, embora haja uma importante discussão acerca da legislação trabalhista nesse novo formato. É necessário compreender que a CLT não é mais sinônimo de uma única forma justa, digna e segura de trabalho. Os avanços são naturais e a sociedade demanda cada vez mais uma economia empreendedora, porém há um poder explicativo sobre o que está imposto diante a subordinação do trabalho às plataformas digitais.
Dito isso, sabemos que o meio digital, o ciberespaço que se tornou essencial para as nossas relações sociais, econômicas, afetivas e de consumo, é onde também as relações de trabalho estão se consolidando. Estamos falando sobre isso aqui na AJN há algum tempo. E esse aspecto se dá também em alguns outros países em desenvolvimento, que como o Brasil, as estratégias de plataformização são extremamente bem-sucedidas e encontram um vasto campo de atuação devido à baixa escolarização, ao uso massivo da internet e à entrada do país na Era Digital sem antes ter consolidado o hábito de leitura de jornais ou outros meios impressos com a consequente análise de conteúdo. Para Manuel Castells, em seu livro Plataformização e o uso da informação para a criação de estímulos de consumo<, diz que o poder da rede opõe-se ao poder da identidade, pois qualquer atividade em qualquer lugar do mundo gravita em direção a essas redes que concentram poder, riqueza, cultura e capacidade comunicativa.
Seguindo a mesma linha de raciocínio de Castells, Cuntt enfatiza que dá pra dizer que todas as afirmações que as elites dominantes propõem seguem uma lógica de articulação através das redes de plataforma, porque simplesmente admiram a plataformização sem questioná-la, o que parece um argumento familiar e convincente. Essa é a mesma elite que se articula pelo liberalismo progressista, e não tem respostas para o problema da exploração da força de trabalho no capitalismo de plataforma – afinal, o liberalismo nunca foi uma resposta ao capitalismo. Não existem ideias novas nesse campo, a não ser um apelo desesperado para todos serem bonzinhos uns com os outros, e isso é mesmo o melhor que podemos fazer? Eu que estudo as relações públicas vejo cada vez mais o debate de como precisamos trabalhar com o sistema que temos e tentar modificá-lo para torná-lo mais inclusivo, descolado e legal. Por outro lado, mesmo assim podemos passar por um ‘’lay-off’’ ou como passar por situações de constrangimento, entre outros efeitos adversos da plataformização.
Já há algum tempo, uma das táticas mais bem sucedidas da classe dominante é a responsabilização. Os membros da classe subordinada são induzidos a sentir que sua pobreza, sua falta de oportunidades ou sua situação de desemprego é culpa sua e de mais ninguém. Os indivíduos culpam a si mesmo, em vez das estruturas sociais, que aliás eles são levados a acreditar que na verdade não existem (são apenas desculpas usadas pelos fracos)
Callum Cant
Em um dos meus capítulos favoritos do livro, que retrata o processo de ideação das graves contra a Deliveroo (serviço de plataforma central do cenário de Delivery Fight), ele cita uma vez que viu um gerente ficar completamente irritado apenas por causa de uma meia visível lateral de um sapato gasto de um entregador. O trabalhador respondeu que não tinha como comprar sapatos novos e que, se o gerente quisesse exigir isso, então a empresa deveria oferecer um salário melhor. Essa intersecção na rotina do trabalho diária de um entregador, que no fim, não tem asseguramento dos seus próprios direitos, exacerba a preocupação apenas com a maximização dos lucros que existe nas relações de trabalho de plataforma.
Após ler o livro me peguei refletindo que os minutos diários destinados para a minha leitura sempre são no caminho para o trabalho no metrô, ou nas pausas do horário de almoço. Foi engraçado fazer essa observação ao mesmo tempo que pensava se realmente a nossa única forma de evitar a tragédia social causada pelo capitalismo de plataforma é reforçar um sistema social que, com seus altos altos níveis de emissão de combustíveis fósseis, em poucas décadas consegue extinguir de vez toda a possibilidade de existência humana na Terra.
Isso é mesmo o melhor que podemos fazer?
O ponto aqui não é levantar que devemos parar de usar as plataformas de delivery, os serviços de streaming, ou qualquer coisa do tipo, até porque como diz José Van Dijck em um dos seus artigos, as plataformas são parte fundamental desse ecossistema onde as grandes corporações controlam os fluxos de comunicação, e das nossas relações, imposta por uma pequena classe de bilionários. Ou seja, uma força coerciva que consegue influenciar e direcionar as escolhas de bilhões de pessoas em todas as partes do mundo. São sistemas de informação global projetados por aparatos tecno-corporativos que agora substituem os poderes econômicos das nações, com objetivo de difundir e enfatizar as mensagens de flexibilidade e autonomia usando os meios tecnológicos digitais com seu poder de propagação em grande escala. Sem se preocupar com a real vivência da população e de quem faz parte dos seus ecossistemas.
De outro modo, a precarização em si não necessariamente fortalece ou enfraquece os trabalhadores. Se por um lado os trabalhadores se veem mais vulneráveis, mais explorados e mais expostos ao desequilíbrio nas relações entre classes, por outro também se tornam mais dispostos a lutar, e dispõem dos meios para isso. Assim como Callum Cant, diferentemente de outros militantes da luta trabalhista, foi fazer entregas pela Deliveroo para ter seu sustento, sem o objetivo militante, e acabou se tornando ativo organizador e mobilizador da greve dos trabalhadores de Brighton.
A lógica do capitalismo digital pede de forma imperativa que nós paremos para questionar se nossas admirações pessoais pela plataformização considera atentamente quem são a ascendência motora das redes da plataforma. Isso significa acrescentar uma série de camadas à plataforma de trabalho, evidenciando a complexidade do fenômeno, tanto em termos de compreender o cenário atual quanto de traçar possíveis alternativas. Já que estamos falando do aprofundamento que norteia o trabalho por plataformas, é importante dizer que nenhum artigo ou livro é suficiente para abarcar de forma aprofundada todos os distintos contextos e dimensões da plataformização do trabalho. Será no livro de Cant que encontraremos uma preocupação em analisar a organização do trabalho, a composição dos trabalhadores e as suas lutas. Por fim, como se os processos de contextualização do tema não bastassem como um determinante para a leitura iminente de Delivery Fight, sem reducionismos, ainda vale dizer que retirando qualquer ressalva, o livro pode ser utilizado tranquilamente para estudos completos sobre a luta de classes.
A vida humana não é somente anexada ao capitalismo, mas também se torna sujeita a monitoramento e vigilância contínuos.
Castells
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