“Ativismo de sofá”: é preguiça ou é possível gerar mudanças sentadas?

O “ativista de sofá”, ou melhor, o dito ativista preguiçoso, é visto até pela etimologia da palavra como alguém que não está disposto a se engajar verdadeiramente no debate ativista. Ainda que existam pesquisas que apontam que o ativismo online é hoje parte indispensável de qualquer movimento transformador, devido a tantas críticas podemos considerar em algum momento que faz sentido falar em ativismo digital como algo à parte, como um tipo específico de ativismo. De toda forma, a nossa proposição aqui é trazer um debate a partir de um olhar da antropologia digital, pensando em como se torna necessário investir em alfabetização digital para elevar o nível de discussão por aqui. Afinal, o sofá é grande e cabe muita gente. 

Por Vitor Ranieri

Presente na era digital, o “ativista de sofá” é aquela pessoa que não é vista em uma manifestação, mas ainda assim emite uma opinião nas redes sociais, pelo wifi de casa. Ela não vai para a Avenida Paulista se manifestar, não tem selfie na Câmara dos Deputados, não foi mesária na última eleição, mas é cheia de questionamentos. Na etimologia, a pessoa “ativista de sofá”, ou melhor, a ativista digital, vem da palavra em inglês ‘’slacktivism’’, que dentre muitas interpretações críticas significa ativismo preguiçoso. No entanto, realmente faz sentido falar em ativismo digital como algo à parte, como um tipo específico de ativismo?  A mídia online e as mídias sociais em particular tornaram possível aumentar a conscientização sobre questões sociais de uma forma que nunca foi possível antes. Podemos ver sem muito esforço como os atos coletivos de ativismo online podem ser eficazes no compartilhamento de informações sobre questões importantes, galvanizando a consciência pública e a vontade política e, em última observação, gerando mudanças.

Para complicar a discussão, existem muitas configurações diferentes de ativismo digital,  com vários graus de crítica. Por exemplo, Kirk Kristofferson, Katherine White e John Peloza definem o slacktivism como uma vontade de se envolver em um pequeno ato simbólico de apoio a uma causa, ao mesmo tempo em que não está disposto a “dedicar esforços para promover mudanças significativas.” Sem dúvida, uma descrição como essa não dá espaço para entender a possibilidade de o ativismo digital ser uma forma legítima e útil de engajamento cívico, certo? Por esse motivo, a insinuação de que indivíduos que se envolvem em pautas sociais pela internet não estão dispostos a participar do offline simplesmente porque são preguiçosos é cringe demais.

Quem ainda acha que ativismo digital é coisa para “preguiçosos” simplesmente não entendeu como a informação circula e se multiplica no ecossistema das redes sociais.

Afinal, estamos todos, querendo ou não, permanentemente com um pé no mundo digital. A pandemia do coronavírus tornou isso mais verdadeiro ainda. Não há por que se referir a um “mundo digital” à parte, separado do mundo “real”. Por isso, o ativismo nas redes digitais é hoje parte indispensável de qualquer movimento transformador. Em contrapartida, os contrastes entre as diferentes e diversas críticas a respeito do tema se expressam na noção de que o digital, embora possa ser reduzido ao código binário, ou seja, ser ou não efetivo, é também um espaço de produção de muitas dessemelhanças e pluralidades.

Os estudos de inúmeras experiências etnográficas comparadas em países como Turquia, Índia e Brasil apontam como os usos das mídias digitais em diferentes culturas locais podem ter significados eminentemente particulares. Segundo Elisabetta Costa, em Mardin, na Turquia, em função da hipótese da vigilância cibernética pelo estado, as redes sociais são usadas para tornar público apenas temas pouco comprometedores do ponto de vista político. Mesmo assim, os ativistas quando usam o Facebook para mobilização de suas causas, tendem a usar perfis fakes para garantir o anonimato e a segurança de suas próprias vidas. Sendo assim, temos a mesma relevância que o barulho das passeatas causa, também no ambiente digital, até porque um e-mail, ou uma carta vazada, já é capaz de fazer um movimento absurdo.

Juntamente com a construção do entendimento do que é o “ativismo de sofá”, Heather A. Horst e Daniel Miller trazem um estudo aprofundado sobre a antropologia digital, que está diretamente ligada ao que fazemos quando decidimos utilizar o digital para trazer diálogos sobre a sociedade. Eles contextualizam em seu livro como a resistência por meio da tecnologia foi identificada historicamente no desenvolvimento de civilizações, assumindo uma posição de sujeito de muitas formas diferentes a partir do contexto da geomídia. O hacktivismo, por exemplo, incluiu a produção dos chamados contra-mapas que movimentaram conglomerados inteiros de uma nação, isto é, quando ativistas políticos ou sociais usam ataques cibernéticos para fazer uma declaração de apoio a uma causa, é possível que tenhamos a coordenação inteira de atividades protestantes gerida por códigos, ou também, como já vimos nos últimos anos, a disponibilização de inventários de recursos indígenas, a divulgação pública de liberações tóxicas em larga escala ou sobre a extração ilegal de recursos pelo estado e entidades comerciais.

Bem, a contar desse momento, o ativismo digital efetivamente não me parece ser uma forma preguiçosa de ativismo. E essa interpretação também foi concluída em um estudo da Universidade da Carolina do Norte (UNC), nos EUA, publicado no início de 2020 pela prestigiada revista Science. Os pesquisadores descobriram que até as formas mais despretensiosas de clicktivism (ou “ativismo digital”) têm algum impacto concreto no mundo. Os pesquisadores notaram ainda que pessoas engajadas virtualmente são também as que mais participam de mobilizações offline. Ou seja, o “ativismo de sofá” não tem substituído, mas sim complementado, o ativismo do mundo físico. Os ditos “ativistas de sofá” ajudam principalmente a disseminar ideias pouco conhecidas, movimentos que não encontrariam espaço em canais convencionais de divulgação como televisão e jornais. Em outras palavras, podemos dizer que um tuíte ou uma hashtag não mudam o mundo, mas milhares delas podem, sim, impulsionar uma causa em nível mundial.

Mas entendo se você prefere a emoção da rua. Só proponho uma democratização do debate. Não vamos brigar. Escute os ativistas de sofá. Até porque estamos gerando informações para os seus gritos, para os seus cartazes. Nós estamos do mesmo lado. Aliás, se quiser, tem espaço aqui. O sofá é grande.

Pedro

Posto isto, vale ressaltar que por muitas vezes imaginei que o ativismo surgiria somente da identificação com a militância de rua, visto que as delimitações do que era ser ativista para mim sempre foram muito rasas – ou você era universitário e se manifestava em frente ao MASP, ou identificar um um papel cívico ficava cada vez mais borrado e de difícil compreensão. Essencialmente por eu ter crescido e passado grande parte da minha infância e adolescência no litoral sul de São Paulo, toda a expressiva função de estar engajado com os movimentos sociais me pareciam distantes. Nesse sentido, o digital foi o único meio que garantiu a minha aproximação com temas sociais como sexualidade, moradia e educação. Assim, eu fui me envolvendo e contemplando as particularidades no meio digital, observando como as construções discursivas aconteciam, fossem elas mais universais ou particularidades, e como toda a atitude era única — lógico que viria entender isso muito mais à frente — mas foi um smartphone que me levou ao primeiro contato com o ativismo. Eu conseguia me mobilizar no offline apenas quando eu ia para as ações que eram promovidas pela igreja de bairro na qual eu fazia parte. Depois quando chegava em casa, valorizava cada momento no digital usando a internet com mais acepção e intenção. E é isso que buscamos quando decidimos levantar discussões sociais e levar a educomunicação por aqui, queremos gerar consciência e transparência para ninguém precisar ir muito longe para ter voz política.

Para mais, a experiência da UCL – Centre of Digital Humanites em Londres, tal como experiências individuais como a minha, possuem importante destaque no debate sobre ativismo digital, pois é uma discussão que atravessa vários campos do conhecimento científico no impacto cultural das expressões sociais contemporâneas. O centro de humanidades digitais está fundado em áreas de estudos interdisciplinares que compreendem os meios digitais como mediadores de outras linguagens como os textos, dados e objetos culturais precursores. Neste enquadramento, temos o aspecto de que a cultura digital colabora estendendo radicalmente os usos de dispositivos anteriores, como a música e a literatura, por exemplo. Em todos esses aprendizados, podemos observar que a orientação conceitual está voltada para análise da cultura digital como campo de mediação das formas precedentes de conhecimento, sistemas de pensamentos e suportes hegemônicos fora da mente. Isto significa que, mesmo que existam argumentações embasadas para trazer os pontos negativos do fortalecimento de conversas no digital, elas se tornam enfraquecidas, posto que voltaremos para a observação sobre como o conceito de antropologia digital contribui para esse diálogo. 

Um estudo, conduzido pela professora Sandra González-Bailón, da Universidade da Pensilvânia, e de Pablo Barberá, da Universidade de Nova York, demonstra que o tipo de ativismo online pode colaborar com determinadas causas. A pesquisa analisou milhares de tuítes relacionados ao Movimento Occupy em 2011, nos EUA, e aos protestos no Parque Gezi, em 2013, na Turquia, dentre outras análises e resultados, mostrou que a informação e a reflexão sobre os acontecimentos foi amplamente divulgada pelos próprios participantes, chegando ao conhecimento, inclusive, de quem não necessariamente era ativista digital, o que permitiu suprir a omissão e a distorção de informações por parte dos meios tradicionais de comunicação, ampliando vozes e as ações reais dos atos. Os usuários que encontravam-se acompanhando as manifestações apenas pela internet não eram tão ativos quanto os que estavam verdadeiramente no local. Contudo, eles eram muito mais numerosos e conseguiram impactar mais pessoas do que os próprios manifestantes. 

A título de exemplo, Mônica Machado traz o cenário de como no Brasil, nas favelas do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, os jovens moradores que possuem smartphones tem, em média, de 15 a 20 grupos de amigos na plataforma do WhatsApp, entre grupos como os amigos mais íntimos até os apenas conhecidos das comunidades, traduzindo a experiência da cultura participativa e coletiva do territorial para o mundo das redes sociais. Além dessa perspectiva, defensores salientam que o ativismo de sofá proporciona uma melhora na inteligência coletiva da população. Pierre Lévy, filósofo francês e autor de diversos livros sobre cibercultura, nega que esse tipo de mobilização seja menos legítima do que as manifestações tradicionais, como protestos na rua, e afirma ser necessário investir em alfabetização digital para elevar o nível de debate na internet.

Por fim, as relações precisam estabelecer uma relação de retroalimentação com o engajamento presencial para que o ativismo digital efetivamente se mantenha ao longo do tempo: de um lado, o engajamento oferece determinadas retribuições simbólicas, culturais, globalizadas e mais acessíveis, e, de outro, tais retribuições recompensam no afetivo, emocional, e comunitário. Mas a discussão sobre o refúgio da frente das telas e a importância de conciliarmos os dois prismas é tema para outra hora, assim, reforçamos não só o engajamento militante mas ao mesmo modo o jornalístico. Spoilers a parte, em função das retribuições sociais e a busca contínua por alfabetizar quem enxerga este espaço como potência, é emergente entender em sentido amplo, que o engajamento social na internet “vale a pena”, assim dizendo, são experienciados igualmente, no ponto de vista do ativista de sofá, e os custos, os riscos, os sacrifícios, os investimentos e/ou as renúncias demandados continuam sendo as mesmas pelo engajamento no offline, a diferença legítima disso tudo é que conseguimos revolucionar sentadinhos em nossos sofás.

Assista Transformar o “ativismo preguiçoso’’ em ação, por Melissa Langdon no TEDx Perth (áudio em inglês):

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