Afinal de contas… sou uma mulher?
Como o racismo atua e se manifesta dentro do recorte de gênero.
Por Ana Rosa Calado Cyrus, para a Revista Viração, edição 117
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Quando tenta-se conceituar o que é ser uma mulher, na maioria das vezes, nos referimos a padrões que foram estabelecidos pelo sistema hegemônico – branco, patriarcal – e há uma determinada limitação que as amarras da sociedade, que possuem suas raízes fincadas nos pensamentos coloniais, nos limitam de enxergar o que está além, de tocar no que a dimensão do saber dominante não consegue alcançar.
O corpo, a essência, o SER mulher negra sofre constantes tentativas de silenciamento e é colocado em segundo plano, em detrimento da valorização das padronizações estabelecidas, sofre violências que incidem em diferentes instâncias das realidades destas mulheres. Neste sentido:
A desvalorização da natureza feminina negra ocorreu como resultado da exploração sexual das mulheres negras durante a escravatura que não foi alterado no decurso de centenas de anos. Já previamente mencionei que enquanto muitos cidadãos interessados simpatizaram com a exploração das mulheres negras quer durante a escravatura quer após, como todas as vítimas de violação da sociedade patriarcal elas eram vistas como tendo perdido valor e dignidade como resultado da humilhação que elas suportaram. As crônicas da escravatura revelam que o mesmo público abolicionista que condenou a violação das mulheres negras olhou-as mais como cúmplices do que vítimas.
(HOOKS, 1981, p. 40)
Foi tirado o direito da mulher negra ter dignidade, tiraram sua humanidade, a olham como objeto, uma moeda que vale para troca, a reduziram a ALGO e tiraram a possibilidade de a mulher negra ser lida como ALGUÉM. bell hooks ainda situa que difunde-se, na atualidade, por meio de diferentes mecanismos, a ideia da mulher negra como possuindo índole ‘negativa’.
A representam de forma contrária ao que a sociedade lê como necessário para construir o mundo que desenham como ideal. Afinal de contas, a mulher negra não é aceita por trazer em seu corpo recortes que a todo momento questionam as estruturas estabelecidas pelas discussões referentes às entranhas que dão base para as ordens que difundem as relações entre sexo e as questões raciais. Nas palavras de bell hooks:
Todos os mitos e estereótipos usados para caracterizar a natureza feminina negra tiveram as suas raízes na mitologia anti-mulher. No entanto, eles formaram a base da maior investigação crítica à natureza da experiência das mulheres negras. Muitas pessoas tiveram dificuldade em apreciar as mulheres negras como nós somos devido à avidez em impor uma identidade sobre nós, baseada num sem número de estereótipos negativos. Os esforços de disseminação contínua de desvalorização da natureza feminina negra tornaram extremamente difícil e frequentemente impossível às mulheres negras desenvolverem um auto-conceito positivo. Porque somos diariamente bombardeadas por imagens negativas. De facto, uma força opressiva foi este estereótipo negativo e a nossa aceitação disso como um papel viável e modelo sobre o qual podemos modelar as nossas vidas.
(HOOKS, 1981, p. 26)
A realidade é que a mulher negra sofre com investidas constantes – violentas e desumanas – para ser inserida nos padrões do que acreditam que seja sua identidade; tiram dela o direito de conhecer-se, de se descobrir, viver suas histórias e não passar o resto de seus dias servindo a uma HISTÓRIA ÚNICA… contada por uma pequena parcela de pessoas que é criada para manter o poder concentrado nas suas mãos, negando aos demais o direito de sobreviverem, de conhecer suas essências e desenharem sua história.
É preciso refletir sobre como, ao longo de todos os passos dados por mulheres negras, elas precisam triplicar suas forças, já que não é possível encontrar suas pautas em todos os movimentos que surgiram ao longo dos tempos pedindo libertação, inclusive dentro do movimento feminista.
Enquanto mulheres brancas pediam pelo direito ao voto, mulheres negras reivindicavam o direito à sobrevivência; enquanto mulheres brancas solicitavam o direito de irem às ruas para trabalhar, mulheres negras clamavam pelo direito de terem o que comer e onde morar.
Não há como dizer que a história das mulheres negras pode ser lida sem levar em consideração recortes que insistem em a manter como objetos. Eu, como uma mulher negra, aos olhos do sistema patriarcal, não sou uma mulher. Mas aos olhos da resistência de quem luta para existir e estar neste mundo, sou.
Que lutemos para que todas essas raízes profundas do sistema opressor, que desgasta o diferente até que desapareça, o qual oblitera da realidade quem não está dentro dos seus moldes, que ele sim desapareça. E não iremos desistir disso, afinal de contas… somos MULHERES NEGRAS!
Quer ler mais sobre isso? Se liga!
Sojourner Truth (1797-1883) foi a primeira mulher negra a pensar a feminilidade com recorte de raça. Vale ler seu discurso “Ain’t I A Woman?”, proferido na Convenção de Mulheres (Women’s Convention) em Akron, Ohio, no ano de 1851. Conheça mais sobre ela:
Vamos falar de outras feminilidades: Se não sou uma mulher?
Não sou eu uma mulher: Mulheres negras e feminismo, de bell hooks, escrito a partir do discurso de Sojourner Truth, é uma obra fundamental sobre a mulher negra, o racismo e sexismo presentes no movimento pelos direitos civis e no feminista. Leitura obrigatória para a construção de um mundo sem opressão sexista e racial.
REFERÊNCIA
HOOKS, bell. Não sou eu uma mulher. Mulheres negras e feminismo. 1ª edição, 1981. Tradução livre para a Plataforma Gueto. Janeiro, 2014.
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Este artigo foi publicado orginalmente na edição 117 da Revista Viração – Manifesto Antirracista. A publicação na íntegra está disponível para leitura na plataforma ISSUU.
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