A participação de jovens negras e a indústria 4.0
A maior parte da população brasileira é composta por pessoas negras (56%) e mulheres (51%), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Mas onde estão essas jovens mulheres negras quando olhamos para a realidade das áreas de tecnologia?
Por Geovana Nogueira, especial para o MUDE com Elas.
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A convite do MUDE com Elas, inicio uma série de reportagens especiais sobre alguns dos temas centrais do projeto. A iniciativa multiatores articula o poder público, empresas, organizações da sociedade civil e as juventudes na realização de ações que visam superar as inúmeras barreiras impostas pelo racismo, pelas desigualdades de gênero e condição socioeconômica – que impedem, atrasam ou atrapalham a garantia de acesso, a permanência e o desenvolvimento de jovens mulheres negras no mundo do trabalho.
Para contextualizar o tema que trataremos ao longo deste artigo, é preciso partir de um ponto comum: uma breve definição sobre a chamada Indústria 4.0.
Também conhecida como a Quarta Revolução Industrial, a Indústria 4.0 é o movimento responsável por inserir a lógica da automação e a integração de tecnologias no setor industrial. Seu principal objetivo é promover, por meio da digitalização de processos e atividades, o aumento da produtividade. A Indústria 4.0 engloba, principalmente, tecnologias como inteligência artificial, computação em nuvem, robótica, Internet das coisas, entre outras. Além dos diversos impactos ligados à automação industrial, também tem sido responsável por transformações significativas na gestão empresarial, sobretudo no que diz respeito a aspectos estratégicos da implementação dessas novas tecnologias, bem como em relação à cooperação e à comunicação entre as áreas de produção e tecnologia da informação. A integração entre essas vertentes torna possível algumas mudanças nas formas de produção e, consequentemente, nos modelos de negócios no Brasil e no mundo.
Principais barreiras e desafios para a inclusão das juventudes no mundo do trabalho
Para boa parte da juventude brasileira, o acesso ao trabalho decente ainda é uma realidade distante. O quadro é ainda pior para pessoas negras, indígenas, mulheres, comunidade LGBTQIAPN+, pessoas com deficiência e migrantes. Ao buscar uma vaga de emprego, essa parcela da população encontra inúmeras barreiras, desafios, desigualdades e um cenário de exclusão. Ter que escolher entre um trabalho ou os estudos, ou até mesmo não conseguir nenhum dos dois por “não cumprir” os requisitos exigidos pelas empresas, precisar interromper os estudos, conviver com preconceitos e encarar longas distâncias para ir e voltar do trabalho são apenas alguns dos desafios que jovens periféricos enfrentam para ingressar e permanecer no mundo do trabalho. Com o avanço e a inserção de novas tecnologias nas nossas rotinas, esse grupo tem encontrado um mercado cada vez mais exigente. Como consequência, também acaba precisando buscar formas de driblar as dificuldades para garantir novas oportunidades.
Há também o componente de gênero. As áreas de tecnologia ainda são muito associadas aos homens. Isso faz com que as mulheres acabem enxergando estes campos como possibilidades muito distantes ou inacessíveis, muitas vezes pensando que não é um espaço para elas, que não seriam capazes de ter uma boa atuação profissional ou até mesmo que seria um ambiente hostil para se desenvolver — e sabemos que muitas vezes será mesmo. Tudo isso colabora para o distanciamento feminino de carreiras que envolvam os campos das tecnologias.
Além disso, por se tratar de um ambiente com muito mais profissionais homens do que mulheres, há uma dificuldade social e estrutural em referenciar uma mulher como autoridade nos assuntos de tech. Quando pensamos em mulheres negras, o cenário é ainda mais escasso – tanto na Indústria 4.0, quanto em outras áreas das ciências e tecnologias.
Karen Rodrigues – uma jovem preta, periférica de 20 anos, que atualmente está estagiando como programadora em uma das maiores organizações financeiras do Brasil – nos contou, em entrevista, um pouco sobre os desafios que ela enfrenta em sua trajetória profissional. “Eu poderia ficar horas listando uma série de empecilhos que ainda preciso lidar no meu dia a dia, porém, no início, os maiores fatores que contribuíram para me distanciar do mercado da tecnologia foi a falta de estrutura: um notebook, cursos pagos, Internet, energia física e elétrica, e depois a distância, porque sempre morei em zona periférica e era tudo muito longe. Muitas vezes não tinha nem o dinheiro da passagem ou os empregadores falavam que eu morava num local muito distante, e eu era desconsiderada para o processo [seletivo].”
Apesar da dificuldade da aferição de dados, a falta de mulheres negras na ciência, na tecnologia e na inovação brasileira é um fato. A narrativa cultural de que existe um espaço pré-determinado para mulheres e outros para homens, é uma das diversas barreiras existentes. E é certo que meninas precisam crescer com referências e com espaço para poder se dedicar às carreiras que desejam. As que conseguem superar os obstáculos de acesso e de permanência, geralmente, ganham muito menos do que uma pessoa branca com a mesma qualificação (ou até inferior), além de encontrarem muito mais dificuldades de desenvolvimento nas empresas para ocuparem cargos de liderança. Laura Siroky, assistente de projetos da VDI Brasil — associação de engenheiros Brasil-Alemanha que faz parte da Rede Multiatores MUDE com Elas — comenta sobre como as desigualdades operam e como podem ser camufladas na Indústria 4.0. “No setor de indústria existem empresas que anunciam: ‘40% dos colaboradores são mulheres, 40% são negros’, mas quando a gente vai olhar qual é o cargo, qual é a posição da pessoa naquela empresa é tipo assistente, secretária, assistente de produção… Então não são cargos estratégicos dentro da empresa. Quando a gente olha o quadro de diretores, o quadro de gerentes [dessas mesmas empresas], são homens brancos tomando as decisões, e são as decisões que vão influenciar o rumo do negócio, que vão influenciar o rumo do mundo como um todo.”
Para Laura, realizar ações afirmativas que promovam uma diversidade real nas empresas, exige que elas compreendam a diversidade como um valor, uma estratégia que é também pedagógica e abram mão de requisitos que são, muitas vezes, impeditivos para o acesso de jovens negras. “Para a gente ter diversidade, a gente precisa abrir mão de alguns pré-requisitos, como exigir inglês logo de cara. Eu vejo como uma dificuldade isso, encontrar empresas que tenham essa visão: ‘eu vou contratar uma pessoa que não tem os pré-requisitos que eu penso, mas que ela tem outras coisas que eu não consigo ensinar, tipo, ela tem força de vontade, ela tem um histórico que é muito diferente, ela tem visões muito diferentes de mundo e que vão agregar ao meu negócio, e o inglês fluente, o excel que ela não tem, eu posso ensinar. Isso eu consigo ensinar para ela, são habilidades, né? Mas habilidades comportamentais, histórico, de vivência eu não consigo ensinar.’ Então falta valorizar mais isso. Eu acho que esse é um desafio que as jovens negras enfrentam porque as empresas ainda não tiveram essa completa virada de chave.”
A tecnologia tem sido vista por jovens como uma possibilidade de ascensão social. Alguns que se colocam em startups e empresas ligadas à tecnologia conseguem, às vezes, um ganho expressivo logo no início da carreira, podendo passar a ideia de que este caminho possibilita um retorno financeiro mais rápido – o que não é uma verdade absoluta. Outros exemplos são de jovens que seguem na tecnologia de forma autodidata e empreendem na área com relativo sucesso. Essa inserção no mercado da tecnologia pode parecer ocasionada por identificação ou talento natural, mas ela está mais próxima de ser uma solução viável para resolver problemas financeiros, ser um refúgio em momentos de vulnerabilidade, do que de uma atuação profissional vocacionada.
Jovens que não têm acesso à educação formal e à qualificação profissional, estão encontrando nas possibilidades da Indústria 4.0 oportunidades para superar essas barreiras – já que muitas posições não exigem formação acadêmica específica e valorizam profissionais capazes de se adaptar rapidamente às novas tecnologias. Karen falou sobre o que, na visão dela, tem atraído a juventude negra e periférica para a tecnologia: “Eu percebo que a programação, por exemplo, vai por um caminho que esbarra em possibilidades como, ser barbeiro, entregador, empreendedor. Porque a gente não se torna dependente da primeira barreira que nos é imposta, que é o acesso ao ensino superior, ou ensino de qualidade. Ainda estamos cercados das imposições do mercado de trabalho construído por pessoas distantes da realidade que vivemos, que têm mais conhecimento prévio sobre o assunto, cursos online, livros caros, notebook de uma ótima qualidade para poder treinar, portfólio, certificados, indicações, acesso a eventos, entre muitas outras coisas; então não é o mesmo caminho de barbeiro, entregador, de ser um “empreendedor”, mas andam juntos pois nunca foi sobre não querer estudar e pegar o caminho mais fácil, e sim sobre sobreviver. É um pouco sobre o que o Paulo Galo fala, a gente trabalha com fome para poder pagar contas.”
Laura Siroky também falou sobre a relação entre a Indústria 4.0 e a inserção de jovens no mercado de trabalho com diversidade de raça e gênero. Para ela, o ganho está em formar equipes com experiências diferentes para ter ideias melhores e, consequentemente, mais inovação. A assistente de projetos da VDI Brasil revelou que, em sua opinião, alguns dos principais problemas estruturais que afastam jovens negras da Indústria 4.0 são o sistema educacional, a falta de representatividade e a falta de estímulo. “Eu vejo que as pessoas têm medo da matemática, elas têm medo das ciências exatas, isso vem muito do nosso ensino básico, e acontece exatamente para que as pessoas criem esse medo e essa barreira com as ciências exatas de que é muito difícil. […] Conforme elas vão ficando mais velhas, elas já têm essa barreira e, principalmente as mulheres negras, elas não veem representantes ali, elas não têm referências de mulheres na tecnologia, mulheres negras na tecnologia que são de sucesso, que se desenvolveram, então essa falta de referência acaba fazendo com que elas entendam que aquele lugar não é para elas.”
O potencial que governos, empresas, instituições e organizações da sociedade civil têm de apoiar jovens negras no desenvolvimento profissional, precisa levar em consideração que a inclusão produtiva dessas mulheres – através de postos de trabalho decentes, que garantam direitos, boa remuneração e possibilidades de crescimento profissional – impacta diretamente em sua possibilidade de emancipação social. É evidente que a Indústria 4.0 no Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer neste campo, pois, embora existam muitas mulheres negras talentosas e referências na Tecnologia, elas ainda representam uma minoria e enfrentam diversos obstáculos para garantirem uma permanência qualificada no mercado de trabalho.
Algumas das possíveis soluções para superar as barreiras de gênero e raça passam pela criação e implementação de políticas públicas e programas de capacitação eficazes, que não só incentivem, mas também permitam que mais mulheres negras ingressem em cursos de ciências exatas e se desenvolvam profissionalmente e academicamente neste campo. “Eu acho que falta mesmo mais esse incentivo governamental, incentivo institucional de trazer mulheres e mulheres negras para essas áreas, tanto através de cotas como de programas de capacitação para que essas mulheres consigam passar no vestibular, para que as mulheres negras se sintam bem-vindas e acolhidas nesse espaço”, enfatiza Laura.
Outro caminho é garantir a participação desses grupos populacionais em projetos de tecnologia voltados para mulheres e, especificamente, para jovens mulheres negras, que mostrem que elas podem sim programar, podem se tornar desenvolvedoras, que são capazes e de conquistar seus objetivos. É preciso trabalhar em rede para a promoção de oportunidades que apoiem o empoderamento das jovens mulheres negras para seguirem carreiras de ciência e tecnologia, como é o caso do MUDE com Elas.
Mulheres que inspiram
Quando perguntamos para Karen sobre referências, ela compartilhou que, estando inserida no campo da tecnologia, agora pode falar de algumas mulheres potentes com as quais já teve contato – como Nina Da Hora, Fabiana Rodrigues, Karen Santos, Nana da Silva – e explica: “Sou hipnotizada pelo trabalho desenvolvido individual e coletivamente por essas mulheres. Me inspira a querer continuar e percorrer caminhos ou até mesmo criá-los.”
Conheça outras mulheres inspiradoras da indústria 4.0:
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Quer saber mais? Confira essas referências:
- Pesquisas revelam desafios para pessoas negras na tecnologia.
- Jovens negros têm menos acesso ao mercado de trabalho, diz pesquisa.
- PretaLab Report 2022 – Um chamado à ação diante da urgência e da importância de dar espaço ao protagonismo das mulheres negras na inovação e na tecnologia brasileira.
- Entenda o papel da Indústria 4.0 na administração industrial.
- Quando surgiu a Indústria 4.0?
- Hispster Ponto Tech – Crianças, jovens e programação
- Inclusão de jovens negros no mercado ainda é um desafio.
- Jovens de periferia mentem o bairro onde moram para obter emprego, diz estudo | Band (uol.com.br)
Créditos
Pesquisa, entrevistas e redação: Geovana Nogueira
Mentoria educomunicativa: Rhafaela Resende
Revisão: Ramona Azevedo
Edição e coordenação: Monise Berno