A Nova Caderneta da Gestante e a Violência Obstétrica Institucional
Ministério da Saúde celebra nova versão do documento, o qual relativiza práticas de violência obstétrica, cita informações duvidosas e retira Doulas e Plano de Parto de seu texto oficial.
Por Lorranny Castro
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Uma nova versão da Caderneta da Gestante foi apresentada ao país pelo Ministério da Saúde no início do mês de maio. Através do secretário de Atenção à Saúde Primária, Raphael Câmara, a instituição afirmou que o documento foi reestruturado para adequar a política e trazer mais segurança para o público materno-infantil. Contudo, diversos profissionais da área da saúde e educação perinatal apontam retrocessos na nova edição do documento, o qual fornece informações duvidosas e naturaliza práticas de violência obstétrica.
Violência obstétrica é o termo utilizado para caracterizar os abusos sofridos por gestantes durante o pré-natal e na hora do parto, no momento do nascimento ou no período pós-parto. Esses maus tratos podem incluir violência física ou psicológica, e fazem da experiência do parto um momento traumático para a mulher e para o bebê. A violência obstétrica está relacionada ao trabalho de profissionais de saúde, mas também a falhas estruturais do sistema de saúde como um todo e à nossa cultura patriarcal e estruturalmente racista.
Sobre práticas violentas na obstetrícia, mais especificamente, a Caderneta indica a realização de Episiotomia — corte vaginal realizado na área do períneo para que a saída do bebê seja mais rápida — como um dos procedimentos que podem ser indicados após avaliação médica. Desde 2018, essa prática é oficialmente contraindicada em qualquer situação pela Organização Mundial da Saúde, a qual esclarece que não há nenhuma evidência científica que apoie a realização do procedimento, sendo então um método desnecessário e violento a quem está parindo.
Além da legitimação da episiotomia, a Caderneta também apresenta a amamentação exclusiva como método contraceptivo — informação incorreta que, agora institucionalmente compartilhada em nome do Ministério Público, pode levar a mais casos de gravidez não planejada ou indesejada por todo o país.
Ainda que o aleitamento materno tenha aumentado no Brasil, menos da metade das crianças brasileiras são amamentadas exclusivamente ao longo dos seis primeiros meses de vida; cerca de 45%, segundo dados do próprio Ministério da Saúde. Além disso, é comum encontrar pessoas que não conhecem o próprio ciclo menstrual e as características de ovulação em seus corpos.
A nova caderneta, atualizada após quatro anos, retirou de seu conteúdo a página sobre Plano de Parto, que estava presente na última edição (2018) e explicava sobre o documento, incentivando a utilização do plano. Além disso, também foi retirada a parte que cita as Doulas enquanto mulheres preparadas para apoiar a gestante no parto. Essas mudanças também são consideradas retrocessos para a saúde pública no Brasil, afinal, tanto o plano de parto quanto a presença de uma doula como acompanhante da gestante são recomendações da Organização Mundial da Saúde para experiências positivas de parto e nascimento.
Diante de tantas perdas com a atualização da Caderneta, torna-se importante ressaltar que desde a primeira versão, lançada em 1988, esse documento é fundamental para a promoção da educação em saúde e de um acompanhamento gestacional qualificado, afinal, é na Caderneta que são registrados todos os procedimentos e exames feitos ao longo da gravidez, criando condições de monitoramento e evolução da gestação. Com o passar dos anos, o documento vinha assumindo um caráter cada vez mais educativo, com textos sobre diversos temas que envolvem os direitos da mulher, informações sobre gestação, amamentação, primeira infância e parentalidade.
As perdas em educação perinatal e as práticas de desrespeito, abusos e violência obstétrica citadas estão sendo não só amplamente difundidas, como também institucionalizadas pelo governo brasileiro, o qual deveria seguir com o compromisso de promover experiências respeitosas de assistência à saúde entre as pessoas grávidas, reconhecendo sua responsabilidade de garantir um serviço de saúde que seja integral, universal e equânime, como são estruturados os princípios do Serviço Único de Saúde (SUS) no Brasil.
Além das modificações no documento escrito, ao longo da cerimônia de lançamento da caderneta, o secretário Raphael Câmara citou a utilização de uma manobra proibida no Brasil — a Manobra de Kristeller — como uma prática que pode ser necessária e, portanto, a decisão sobre sua realização deve ser médica. A manobra consiste em empurrar, com as mãos, cotovelos e até mesmo subir na barriga da gestante em trabalho de parto para empurrar o bebê, podendo causar danos como: rotura uterina, lacerações vaginais, fratura de costela, rotura de baço ou fígado, hematomas, descolamento prematuro de placenta, menor oxigenação e fraturas para o feto.
Em documento de 2017, o Ministério da Saúde afirmava categoricamente nas Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal que “a manobra de Kristeller não deve ser realizada”.
O Secretário também disse, ainda na cerimônia de lançamento: “Vamos parar de usar termos que não levam a nada, como violência obstétrica, que só provoca desagregação, coloca a culpa no profissional único, o que não tem o menor sentido”. Essa fala é mais um exemplo de que a negligência e a violência durante o parto vem sendo institucionalizada e legitimada, resultando em processos que omitem a responsabilização de instituições e profissionais de saúde envolvidos com a execução de tais práticas de violência, transferindo a responsabilidade de promover uma boa experiência de parto para as próprias pessoas envolvidas nesse processo, ou seja, as pessoas gestantes que utilizam o serviço de saúde.
Diversas profissionais da saúde, conselhos e organizações têm se pronunciado contra a atualização da caderneta, como a presidente do SindEnfermeiro do Distrito Federal, Dayse Amarílio, que também é enfermeira obstétrica. Em rede social, ela disse:
“Depois de um retrocesso vergonhoso ao acabar com direito de gestar e parir com humanidade, a nova caderneta da gestante estampa a violência obstétrica combatida mundialmente. Vergonha de um país que tem caminhado contra a ciência e contra o que é mais sagrado: o direito de parir e nascer com dignidade!”.
Dayse Amarílio
Além disso, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) e o Conselho Federal de Enfermagem se pronunciaram contra a nova caderneta, afirmando que o documento contraria evidências e diretrizes do Ministério da Saúde.
Ainda que o secretário afirme que “Tem algumas coisas que, dependendo da situação e em casos excepcionais, podem e devem ser feitas e quem define isso é o médico, não são leigos, militantes, ativistas”, são muitas as manifestações vindas da sociedade civil contra a nova caderneta, as quais sinalizam, de um jeito ou de outro, a necessidade de se construir uma saúde pública que tenha, de fato, participação pública em seu desenvolvimento e que considere os direitos humanos ao oferecer serviços.
Para refletir mais sobre a questão, assista o episódio Violência Obstétrica, do Programa Sala de Convidados – Canal Saúde Fiocruz
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Quer saber mais? Confira essas Indicações Bibliográficas:
1. D’OLIVEIRA, Ana Flávia Pires Lucas; DINIZ, Simone Grilo; SCHRAIBER, Lilia Blima. Violence against women in health-care institutions: an emerging problem. The Lancet, v. 359, n. 9318, p. 1681-1685, 2002.
2. MILLER, Suellen; LALONDE, Andre. The global epidemic of abuse and disrespect during childbirth: History, evidence, interventions, and FIGO’s mother− baby friendly birthing facilities initiative. International Journal of Gynecology & Obstetrics, v. 131, p. S49-S52, 2015.
3. DINIZ, Carmen Simone G et al. Disrespect and abuse in childbirth in Brazil: social activism, public policies and providers’ training. Reproductive health matters, v. 26, n. 53, p. 19-35, 2018.
4. LEITE, Tatiana Henriques et al. Desrespeitos e abusos, maus tratos e violência obstétrica: um desafio para a epidemiologia e a saúde pública no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 27, p. 483-491, 2022