A marginalidade do Islã no sistema internacional
Por DIARIODASNACOES
–
Em setembro de 2023, na reunião do G20 na Índia, um dos temas que mais chamou atenção da mídia internacional foi a suposta mudança de nome do país para Bharat.
O termo, já presente na constituição indiana como denominação oficial do país, tem origem no sânscrito, que remete à herança hinduísta do subcontinente. Enquanto que “Índia” deriva do rio Indo, um dos berços civilizatórios da Ásia e que, curiosamente, é atualmente localizado quase que por completo no Paquistão.
O partido do premiê Narendra Modi, BJP (Bharatiya Janata Party), no poder desde 2014, segue uma linha nacionalista hindu, com claras tentativas — e avanços — de suprimir os traços muçulmanos do país (15% da população, cerca de 200 milhões de pessoas). A “mudança” de nome seria mais um passo para apagar uma população que rivaliza em tamanho com a brasileira.
Porém Modi não aparenta estar distante de padrões internacionais. A repressão de populações islâmicas parece cada vez mais banal, e perpassa as ações de todas as principais potências.
Assim como na Índia, na Europa a disputa com populações islâmicas possui complexo contexto histórico, e é presente desde a idade média. As Cruzadas fomentaram um processo de expulsão sistêmico, que nutriu um forte sentimento de aversão à cultura muçulmana. Espanha e Portugal fundamentaram seu desenvolvimento nacional a partir de um sentimento anti-mouros, por exemplo. Hoje, as ondas migratórias, alinhadas a uma ressurgência nacionalista nos governos europeus, recolocam os muçulmanos em um lugar de segunda classe.
No outro lado do Atlântico, desde setembro de 2001 que os Estados Unidos começaram a própria Cruzada, que deixa cicatrizes no Oriente Médio até hoje. O reconhecimento de um novo alvo para a sedenta indústria bélica americana formou um rastro de populações totalmente desamparadas, como no Iraque, Síria e Afeganistão. Além da produção em escala industrial de obras marginalizando populações árabes, as estereotipando e fabricando um asco em sua direção por todo o Ocidente.
Na China, o outro gigante geopolítico do atual sistema internacional, também ocorre perseguição. Os Uigures da região de Xinjiang, maior população islâmica do país, enfrentam medidas que os excluem de qualquer participação política. E segundo relatório da ONU (Organização das Nações Unidas) de agosto de 2022, mais de 1 milhão de uigures vivem em condições semelhantes a campos de concentração.
Mesmo no Oriente Médio, berço da religião e centro da cultura islâmica no mundo, Estados autoritários e conflitos étnicos sufocam as populações. Guerras civis na Síria e no Iêmen parecem não encontrar fim e governos absolutistas como a teocracia iraniana perseguem e ceifam movimentos de caráter liberal e progressista.
Também o avanço de um governo extremista em Israel tornou mais frequentes ataques contra a população palestina, ao mesmo tempo que a comunidade internacional parece mais tolerante ao Estado sionista, com diversos países relocando suas embaixadas de Telavive para Jerusalém, alinhando-se com as preferências israelenses.
A causa desta indiferença parece estar atrelada a falta de representatividade islâmica de qualidade no alto escalão geopolítico. Das cinco cadeiras permanentes no Conselho de Segurança da ONU, todos abusaram de populações islâmicas historicamente.
Nos séculos XIX e XX, França e Inglaterra partilharam entre si praticamente toda a África islâmica por décadas. Rússia e China ainda possuem populações islâmicas sob suas bandeiras, resquícios de configurações imperiais. E os Estados Unidos formularam a Guerra ao Terror.
O atual sistema geopolítico carece de uma potência islâmica que defenda os interesses e direitos de 1,5 bilhão de pessoas com o afinco adequado. O Estado que ocupou este cargo por 600 anos foi o Império Otomano, drenado e eclipsado pelas potências europeias do século XIX e início do século XX.
Após o final da 1ª Guerra Mundial, as discussões sobre a partilha do território otomano foram concretizadas a partir de dois tratados, Sèvres (1920) e Lausanne (1923), discutidos e fabricados principalmente por França, Reino Unido e a nova república turca.
O primeiro, Sèvres, foi considerado um desrespeito absoluto pelos turcos, principalmente por postar termos muito mais severos do que os aplicados aos outros perdedores da Grande Guerra. Entre estes, a perda territorial de 70% do território, a internacionalização dos estreitos de Bósforo e Dardanelos, além de zonas de influência francesas, inglesas e italianas em território turco.
A reação ao tratado e a complexidade de sua aplicação levou à Guerra de independência turca, liderada por Mustafa Kemal, denominado Ataturk (Pai dos Turcos). Sèvres nunca chegou a ser ratificado, e Ataturk levou os vencedores da Grande Guerra de volta à mesa de negociação.
O Tratado de Lausanne foi responsável por reconfigurar todo o Oriente Médio, selando o declínio dos turcos e afastando sua influência da região. Foram estabelecidos os mandatos franceses do Líbano e da Síria e os britânicos da Palestina e Mesopotâmia (Iraque), designando fronteiras já semelhantes às atuais.
Desde Lausanne há 100 anos atrás, nenhum outro país muçulmano atingiu a mesma relevância do império turco, e formou-se um vácuo que possibilitou os abusos do mundo atual.
Hoje, Arábia Saudita e Irã são os principais candidatos a ocupar este espaço. Mas apesar do potencial presente em todos os quatro países listados, nenhum se apresenta como candidato elegível ao posto.
O autoritarismo aparece como um dos principais empecilhos para a ascensão dos dois Estados como defensores das populações islâmicas.
Na península arábica, entre perseguições a jornalistas e condições de trabalho exploratórias, o país desértico, mesmo possuindo as duas cidades sagrados para o Islã — Meca e Medina — concentra seus esforços geopolíticos em interesses próprios. A recente aproximação com Israel deixa isso claro.
O Irã é uma teocracia também anacrônica. Sufoca movimentos liberais e apesar da posição estratégica privilegiada, tem em sua forma de governo um obstáculo para o protagonismo humanitário, oprimindo sua própria população.
Além dos problemas internos, a relação diplomática entre os dois Estados estava congelada até este ano, quando a China intermediou a retomada das mesmas. Irã e Arábia Saudita representam os dois maiores grupos populacionais islâmicos, os persas, xiitas e os árabes, sunitas. A disputa, no fim, acaba por levar ainda mais sofrimentos para a população, como prova a guerra patrocinada pelos dois no Iêmen.
Neste contexto, a reforma do Conselho de Segurança — um dos caminhos mais plausíveis para o reequilíbrio dos abusos listados — se inviabiliza. Mesmo com a ascensão de um Estado muçulmano, não é garantia de que a manutenção de direitos humanos seria pauta prioritária. O Irã, por exemplo, deveria responder pela morte de Mahsa Amini, o que enfraquece qualquer denúncia contra outro Estado.
Marginalmente, deve-se também levar em conta a posição da Indonésia. O maior país muçulmano do mundo em termos absolutos aparece também com potencial para tal papel, porém se mantêm distante destas discussões.
Aqui, o problema do autoritarismo é menos presente, porém a imensa diversidade étnica e proximidade com Índia e China levam os interesses do país-arquipélago para outra direção.
Em conclusão, os abusos com populações muçulmanas nao parecem estar perto do fim. A atuação de organizações internacionais deve se fazer mais presente, e por falta de outras opções, países com diásporas islâmicas devem se posicionar mais claramente, iniciando estas discussões que inexistem no sistema internacional vigente.
–
TEXTO – João Francisco Araújo
IMAGEM – Ali Mansuri via Wimedia Commons / CC BY-SA 2.5